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Editorial: Ameaça, liberdade de expressão e democracia

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O vocabulário chulo e as atitudes próprias dos arruaceiros que se divertem provocando confusões por onde passam, tem sido reveladas ser os traços mais marcantes da personalidade do inquilino do Palácio do Planalto. Incapaz de portar-se com a altivez que o cargo exige, Jair Bolsonaro, sempre que questionado sobre fatos ou atos que parece pretende manter nas sombras, sem argumentos plausíveis para se defender, tem tentado intimidar quem o confronta ou incentivar seus seguidores, um extraordinário exército de pessoas ignorantes ou mal intencionadas que aplaudem todo e qualquer gesto ou pronunciamento que faz, por mais grosseiro e sem propósito que seja, a atacar quem no cumprimento do dever o questiona. Sejam magistrados, parlamentares ou jornalistas. Hoje, por exemplo, incentivados pela fala do presidente, no Twitter, no Facebook e no Instagram, apoiadores de Jair Bolsonaro usaram sua frase como incentivo para agressões a jornalistas, em uma retórica que, na maioria dos casos, ultrapassou os limites dos tradicionais ataques verbais para ameaças concretas de violência física.

Consciente que os magistrados não vão se curvar aos seus arroubos totalitários, até porque não há clima nas ruas para autorizar, por mais desequilibrado que seja o candidato a déspota, um golpe nas instituições; já tendo se rendido à banda podre do Congresso Nacional para blindar-se e evitar que tenha a mesma sorte do seu hoje aliado Fernando Collor de Mello ou de sua desafeta Dilma Vana Rousseff, o presidente Jair Bolsonaro voltou-se então contra a imprensa – a parcela da imprensa que se mantém fiel ao seu compromisso de informar à sociedade sobre todas, invariavelmente todas, as eventuais transgressões dos diplomas legais vigentes praticadas por agentes públicos, seja ele presidente da República ou prefeito do menor município brasileiro. A mesma imprensa que foi demonizada no Governo Collor, no Governo FHC e nos Governos do PT, responsável por jogar luz nos subterrâneos pútridos do poder.

Esse comportamento desequilibrado, não deveria causar surpresa. É marca de sua biografia. Não sem razão o General Ernesto Geisel, uma das figuras mais respeitadas do regime dos generais presidentes que vigeu durante 21 anos, em depoimentos, em 1993, aos pesquisadores Maria Celina D´Araújo e Celso Castro, que foram publicados no livro ‘Ernesto Geisel’, ao responder ao questionamento “O que é mais forte: a pressão dos civis batendo nas portas dos quartéis ou a aspiração de alguns militares querendo liderar politicamente o país?”, respondeu, literalmente: “Entre nós no Brasil a vinculação dos militares com a política é tradicional. Isso vem da nossa formação. O que houve no Império? Quantos políticos quiseram ser militares através da Guarda Nacional? Quantos generais foram políticos? Sempre houve militares envolvidos na política e isso continuou com a República: por exemplo, o problema do Hermes da Fonseca na campanha civilista do Rui Barbosa. É sempre a política entrando no Exército. Isso é mais ou menos tradicional. Tenho a impressão de que, à medida que o país se desenvolve, essa interferência vai diminuindo. Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos com o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal; inclusive, um mau militar”.

Houve, é verdade, nos últimos dois meses, um período em que se imaginou que o presidente teria se submetido aos conselhos da minoria de pessoas de bom senso que o cercam. Ledo engano. O recuo do presidente não teve nada a ver com a sanidade, mas sim com o medo. A prisão do “primeiro amigo” e possivelmente o mais rico acervo sobre as atividades subterrâneas dos Bolsonaros, pai e filhos, foi responsável pelo estratégico recuo, materializado pelo silêncio que evitou que pudesse construir pântanos nas cercanias do Palácio do Planalto.

Surpreendido pelo trabalho investigativo sério e responsável realizado pelos jornalistas da revista Crusoé, que vem jogando luz nas traquinagens do filho senador (Flávio Bolsonaro) e, por consequência, chegando na sala de estar do Palácio da Alvorada, o presidente, assustado, acuado e cada dia mais próximo de responder, no mínimo, a um processo de impeachment, mesmo depois de desposar com o que há de pior no Congresso Nacional, justamente a parcela de parlamentares investigados pela Justiça que prometeu, na campanha eleitoral, banir da vida pública; de abrir conversações para aparar arestas com o Supremo Tribunal Federal e os presidentes da Câmara dos Deputados e Senado da República, optou pelo silêncio em público. Limitou-se a regurgitar seus despropósitos no meio dos novos aliados, durante a inauguração de obras que deveriam ter sido concluídas a um bom tempo, não fosse a sanha delinquente dos seus antecessores. E calado, Bolsonaro demonstrou ser um gentleman.

Mas, diz o adágio popular, a afeição cega a razão, bastou que o Datafolha – o amaldiçoado Datafolha – apontasse um expressivo aumento na sua popularidade, resultado do programa social para enfrentamento da pandemia do Novo Coronavírus generosamente aumentado (de R$ 200 para R$ 600) pelo Congresso Nacional, que astutamente assumiu como seu, Jair Bolsonaro julgou-se no direito de voltar a ser o verdadeiro Jair Bolsonaro e, questionado sobre os R$ 89 mil depositados pelo “primeiro amigo” Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michele Bolsonaro, ameaçar “ “encher de porrada” a boca do jornalista de O Globo que, cumprindo sua missão, acompanhava a visita do presidente à Catedral de Brasília, onde, supostamente, deve ter parado para fazer uma oração. Quem sabe aos mais de 115 mil brasileiros mortos pela Covid-19 que insiste em minimizar.

Não satisfeito, embora a repercussão negativa de sua valentia da véspera tenha corrido o mundo, envergonhando o Brasil e sua gente, reunido com um grupo de profissionais da Saúde que fazem coro com sua defesa pelo uso de um medicamento que não tem ainda comprovação cientifica de sua eficácia comprovado, em um ato no Palácio do Planalto em que ignorou-se, mais uma vez, as mais de 115 mil pessoas, suas famílias, seus amigos e sonhos, vítimas da Covid-19, Jair Bolsonaro voltou a ser o “caso completamente fora do normal”, a que se referiu o general Ernesto Geisel, e à constatação diária de seu desprezo pela democracia, ao chamar os jornalistas, em meio a um evento oficial da República, de “bundões”.

Bravatas e arroubos autoritários à parte, em meio a mais um surto de truculência, o presidente Jair Messias Bolsonaro só não respondeu à pergunta que não quer calar sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz e sua esposa Márcia na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.

E possivelmente não teremos esta resposta, a menos que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, cumpra seu papel e restabeleça a sentença do ministro Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, e mande Queiroz e a mulher para a penitenciária e um dos dois resolva ser honesto e contar a verdade.

Até lá, o auxilio emergencial vai continuar inflando a popularidade do presidente. Infelizmente, no sentido contrário, seu compromisso com a democracia, deteriorando.

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