“O Brasil ficou 350 anos viciado na escravidão porque todos os ciclos econômicos foram construídos com mão de obra escrava”, diz o jornalista e escritor Laurentino Gomes
O pesadelo da escravidão no Brasil nunca foi tão discutido quanto agora, em 2022, quando o país comemora 200 anos da independência de Portugal. O jornalista, pesquisador e escritor Laurentino Gomes é um dos responsáveis por colocar o dedo nessa ferida. Há 15 anos, Laurentino trocou uma bem-sucedida carreira na imprensa pelo desafio de pesquisar e escrever sobre a história do Brasil. Depois de fazer muito sucesso com três livros sobre momentos-chave do nosso país – 1808, sobre a vinda da família real, 1822, sobre o processo de independência, e 1889, que aborda a proclamação da República –, Laurentino engatou, desde 2019, uma trilogia de 1.500 páginas sobre o período que o Brasil viveu sob um regime escravocrata. O último volume de Escravidão, que aborda o período que começa na independência e termina na decretação da Lei Áurea, acaba de ser lançado. E choca por expor de forma explícita não só a rotina de violência contra os escravizados como o descaso da população branca brasileira em relação ao tema, algo que segundo ele perdura hoje, na forma de racismo. “O mais assustador e chocante é a constatação de que a ideologia escravista virou uma ideologia racista, a ideia de que o negro brasileiro é inferior”, diz Laurentino na entrevista a seguir. Segundo o autor – que anunciou a doação para o Instituto Pretos Novos (IPN), do Rio de Janeiro, de toda a bibliografia usada como fonte de pesquisa para escrever a trilogia, cerca de 200 livros com marcações e anotações sobre África, história e cultura afro-brasileira —, o regime escravocrata durou 350 anos porque a elite agrária brasileira ficou refém da mão de obra escrava, que impulsionou todos os ciclos econômicos, do pau-brasil ao café. Por isso, atribui a queda da monarquia à Lei Áurea, promulgada em 1888. “Os fazendeiros se sentiram traídos, não é à toa que apenas um ano depois veio a república”, diz.
Você se debruçou sobre um tema que marcou de forma terrível nossa identidade como país por quase quatro séculos. Das suas primeiras pesquisas até o ponto final da trilogia, o que mais te surpreendeu ao estudar todo o processo de escravidão no Brasil?
Foram várias coisas importantes. Primeiro, a escravidão nem sempre foi negra e africana. Na história da humanidade, a escravidão sempre esteve presente. Onde há registro de civilização humana, também há registro de escravidão: na China, na Índia, no Egito, na Babilônia, na Grécia, no Império Romano, nos territórios muçulmanos, na África e na América, antes da chegada dos portugueses. Isso é muito interessante. Aliás, a etimologia da palavra “escravo” vem de “eslavo” – povo branco, de olhos azuis, que era escravizado na bacia do Mar Negro e levado como pessoas escravizadas para a bacia do Mar Mediterrâneo. No Brasil, antes de ser negra, a escravidão foi indígena. Os portugueses fizeram todos os esforços para escravizar os indígenas depois da chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia, em 1500. A escravização indígena “fracassou”, do ponto de vista do escravizador, por razões óbvias — junto com os europeus, vieram as epidemias: a gripe, o sarampo e todas as febres, que dizimaram a população indígena. O Brasil dizimou 3 milhões de indígenas durante o período colonial. E aí começa a escravidão africana. Um dado interessante é que foi a primeira vez que há uma associação direta entre cor da pele e cativeiro. Tem raízes profundas essa associação, de ordem religiosa, filosófica, de que o negro era inferior, bárbaro, praticante de religiões demoníacas e, portanto, um candidato natural à escravidão. Pela primeira vez, essa ideologia racista associa a cor negra da pele à escravidão. Os números são impressionantes. Cerca de 12,5 milhões de negros embarcaram em navios negreiros na África, sendo que 10,7 milhões desembarcaram nas Américas durante três séculos e 1,8 milhão morreram na travessia do Oceano Atlântico – isso dá 14 cadáveres em média lançados no mar todos os dias ao longo de 350 anos. O mais assustador e chocante é a constatação de que essa ideologia escravista virou uma ideologia racista, a ideia de que o negro brasileiro é inferior, não merece as mesmas oportunidades na sociedade brasileira. Essa é a raiz do racismo no Brasil. Ele está solidamente plantado na escravidão.
Da chegada dos primeiros negros escravizados ao Recife, em 1538, até a assinatura da Lei Áurea, em 1888, o Brasil viveu 350 anos sob um regime escravocrata. Como a escravidão conseguiu perdurar por tanto tempo no Brasil e quais foram os principais motivos que levaram à abolição?
É muito importante levar em conta que, em sua dimensão territorial, o Brasil é 91 vezes maior do que a pequenina metrópole portuguesa. Portugal não tinha população para ocupar e explorar o Brasil nos seus grandes ciclos econômicos – do pau-brasil, do açúcar, do ouro, do diamante e, depois, do café, tabaco, algodão e assim por diante. Então os portugueses, primeiro, tentam escravizar os índios e depois se voltam para África, onde já havia escravidão (como em qualquer outra parte do planeta) e um mercado organizado de fornecimento de mão de obra cativa. Só que os portugueses e europeus acirraram a escravidão na África fornecendo armas, munições, dinheiro e mercadorias, que aumentaram as rivalidades regionais, as guerras civis. E também as ofertas de pessoas escravizadas, depois das guerras, vendidas para os navios negreiros. Então essa é a base da escravidão. A escravidão africana no Brasil e na América dá início à produção das primeiras grandes commodities da história da humanidade, os primeiros bens de consumo de massa. Até o início dos engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro, do Recôncavo, da zona litorânea do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, o açúcar era um bem muito precioso e raro na Europa – figurava inclusive em dotes de casamentos, testamentos e heranças. Aí, de repente, vira um consumo de massa muito popular e barato. Isso só foi possível pela grande lavoura, pela escravidão. Logo em seguida, surgem outras formas de produção de commodities, como por exemplo o algodão, o café e o tabaco, que se tornam uma febre na Europa e em todo o mundo. Essa é uma escravidão industrial nos números e também na forma de produção, de divisão do trabalho. Então, sobre sua pergunta, por qual motivo o Brasil demorou tanto para acabar com a escravidão: porque todos os ciclos econômicos foram construídos com mão de obra cativa. O Brasil estava viciado em escravidão. Por exemplo: em 1822-1823, o patriarca da independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, defendia que o Brasil tinha que acabar com o tráfico negreiro e, gradualmente, com a escravidão. Ele dizia: ‘Não é possível construir um país decente com a imensa maioria da população escravizada ou forra, analfabeta e abandonada à própria sorte’. O Brasil precisava resolver a escravidão, que ele dizia ser ‘um câncer que roía as entranhas da sociedade brasileira’. Interessante que Joaquim Nabuco, mais tarde, ia retomar essa ideia, dizendo que ‘a escravidão corrompeu, distorceu a maneira como a sociedade brasileira poderia ter se organizado’. Segundo ele, inviabilizou a construção de um país decente, funcional, equânime, em que todas as pessoas tivessem os mesmos direitos e deveres. Isso fez com que a escravidão se perpetuasse até 1888. O Brasil foi o último país a acabar com o tráfico negreiro na América, em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, e o último a acabar com a escravidão. Portanto, o Brasil ficou refém da escravidão. A elite agrária escravista brasileira defendeu com unhas e dentes a preservação do regime escravista, porque a sua prosperidade, a sua riqueza, a lavoura do Brasil dependia de mão de obra cativa.
No último volume da trilogia, você resume bem a visão da elite brasileira do século 19 sobre a escravidão descrevendo o clã liderado por Joaquim José de Sousa Breves, do interior paulista, que chegou a manter 6 mil escravizados e dominava de ponta a ponta o processo de escravidão. A família era dona de navios negreiros que traziam escravos da África, controlava os pontos de venda desses escravizados, usava-os em suas plantações de café no Vale do Paraíba e mantinha forte influência política junto à Corte, o que lhe assegurava impunidade. Todo esse império ruiu após a decretação da Lei Áurea. É possível atribuir a queda da monarquia ao fim da escravidão, uma vez que a proclamação da República, com forte apoio dos grandes latifundiários, ocorreu no ano seguinte à decretação da Lei Áurea?
Sim, as duas coisas estão conectadas. O Sousa Breves que você cita é um personagem interessante porque é um resumo do Brasil do século 19. Ele tinha 18 anos e estava nas margens do riacho Ipiranga no final da tarde de 7 de setembro de 1822. Ele testemunhou o Grito do Ipiranga, ele fazia parte da Guarda de Honra de D. Pedro… depois, ele plantou milhões de pés de café, se tornou o maior senhor de escravos da história do Brasil, traficante clandestino e ilegal de escravos. Por isso D. Pedro II não teria dado a ele o título de barão — ao contrário de todos os outros cafeicultores, boa parte se tornou barão. Ele recebeu só o título de comendador porque foi flagrado num grande desembarque clandestino de escravos depois da entrada em vigor da Lei Eusébio de Queiroz, de 1850. O desembarque ocorreu dois anos depois, na localidade de Bracuinha, em Angra dos Reis. Ele resistiu a todos os esforços para a abolição e morreu falido porque todo o seu capital estava empregado, primeiro, em escravos, e depois em uma lavoura decadente, chamada de lavoura arcaica do café do Vale do Paraíba. Sem dúvida que existe uma associação entre o trono brasileiro e o escravismo. O Sérgio Buarque de Holanda, nosso grande historiador paulista, fala em um sentimento de medo na época da independência que serviu de amálgama para o processo de independência do Brasil. Eram dois medos. O primeiro era de uma guerra civil: se o Brasil seguisse por uma via semelhante aos de nossos vizinhos da América espanhola, o país entraria numa guerra civil republicana, os chefes políticos regionais iam lutar entre si e o Brasil poderia se fragmentar em três ou quatro países independentes – como aconteceu com a América espanhola, que se transformou numa constelação de países independentes. Mas havia um segundo medo, o de uma guerra étnica. Porque se os chefes políticos regionais tivessem que lutar uma guerra civil republicana, teriam de armar seus escravos, porque essa era a força disponível. Esses escravos armados, imbuídos das ideias libertárias que vinham da Europa e Estados Unidos, poderiam reivindicar sua própria liberdade e trucidar os brancos. Foi isso que aconteceu no Haiti, em 1791-92: no calor da Revolução Francesa, os colonos franceses entraram numa guerra civil entre si, armaram os escravos e houve um banho de sangue – os escravos trucidaram os brancos. Então havia o medo de um “haitianismo” no Brasil entre 1821 e 1823. Isso fez com que a elite agrária brasileira, que tinha tudo a perder nessa hipótese, optasse pela via conservadora: manteve a monarquia, manteve o herdeiro da Coroa de Portugal no trono e não mexeu em nada. Não fez reforma agrária, não fatiou latifúndio, não distribuiu riquezas, não educou as pessoas – o índice de analfabetismo era estimado em 99% na época –, não acabou com o tráfico negreiro nem com a escravidão. Então houve um pacto entre a monarquia e a elite: uma apoia a outra e ninguém mexe nos interesses de ambos. Esse pacto deixou de existir com o movimento abolicionista brasileiro, depois da Guerra do Paraguai (1864-1870) – o movimento começa de fato em 1870, e aí depois vem a Lei do Ventre Livre (1871), Lei dos Sexagenários (1885) e, por fim, a Lei Áurea, em 1888. Quando o trono brasileiro, forçado pela opinião pública por causa das mudanças do século 19, se tornou também abolicionista, o edifício ruiu. Houve uma implosão da monarquia. E não é à toa que apenas um ano depois veio a república, porque os fazendeiros se sentiram traídos e migraram para a campanha republicana. O melhor exemplo é o Partido Republicano Paulista, fundado na Convenção de Itu, de 1873, por grandes cafeicultores. Eles eram contra o fim da escravidão, com a exceção de Luiz Gama – que era abolicionista e negro e se recusou a assinar a ata porque os fazendeiros não quiseram incluir a abolição da escravatura no programa do partido. Esses fazendeiros aderiram à campanha republicana, D. Pedro II se sentiu sozinho e abandonado e o resultado foi a proclamação da república, no dia 15 de novembro de 1889.
O abolicionismo é considerado por historiadores como o primeiro grande movimento social brasileiro. Ele se consolidou, como você disse, a partir da década de 1870, mas levou praticamente 20 anos para atingir seu objetivo. Os abolicionistas não cogitaram em nenhum momento estimular a via violenta, pela revolução, para acabar com a escravidão? Pergunto isso porque após a independência, entre 1822 e 1850, tivemos dezenas de movimentos sociais e rebeliões em diferentes regiões do país e por vários motivos, mas pouquíssimos levantando a bandeira do fim da escravidão.
Sim, existiu uma sensação de orfandade na independência do Brasil. Índios, ribeirinhos, sertanejos, pessoas escravizadas e negros forros pegaram em armas para lutar contra os portugueses. E foram abandonados. O Brasil não mudou sua estrutura social. Isso irrompe numa série de revoltas, especialmente entre 1831, ano da abdicação de D. Pedro I ao trono, e 1840-41, durante a maioridade de D. Pedro II. O Brasil ficou em chamas. Mas de fato as ideias abolicionistas não tiveram o impacto que teriam depois da Guerra do Paraguai. Elas circulavam em alguns ambientes intelectuais no Brasil, mas era um país de 99% de analfabetos. Como poderia ter uma campanha popular, de rua, num Brasil isolado no campo, pobre e escravizado? Em 1870, a situação tinha mudado, inclusive na tecnologia: tinha telégrafo, trem, jornal, escolas de Direito no Recife e em São Paulo, depois viria o telefone. As ideias começaram a circular no Brasil e houve uma mudança grande – o país foi se urbanizando aos poucos, surge uma classe média urbana que se envolve na campanha abolicionista. Essa é a razão pela qual o abolicionismo chegou ao Brasil com quase um século de atraso, em relação com a campanha abolicionista na Inglaterra. Mas havia divergências entre os abolicionistas. Em São Paulo, por exemplo, tinha o Antonio Bento, filho de um farmacêutico, que defendia a via violenta – uma espécie de Zumbi dos Palmares do século 19. Ele achava que tinha de invadir as fazendas, incendiar os canaviais, surrar os feitores e até assassinar os fazendeiros, dependendo do caso. Os outros grandes abolicionistas – especialmente Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças — defendiam uma via moderada. Nabuco dizia que a abolição tinha de ser feita dentro do Parlamento, pelas instituições. Porque ele temia a chamada bomba social — a mesma da época da independência, o haitianismo – nas vésperas da Lei Áurea. Ele falava que se levasse essa campanha para dentro das senzalas, nos quilombos, poderia se tornar incontrolável. E foi de fato o que aconteceu: o Brasil fez a abolição pela via institucional, dentro do Parlamento. Claro que tivemos alguns efeitos colaterais. Houve um pacto, os escravos foram abandonados à própria sorte, nunca foram incorporados à sociedade brasileira, não tiveram educação, moradia, renda, bons empregos, nada. Mas o fato é que o Brasil conseguiu fazer a abolição sem uma guerra civil como a Guerra de Secessão nos Estados Unidos, em que 700 mil pessoas morreram para que o presidente Abraham Lincoln conseguisse acabar com a escravidão no sul dos EUA.
Quem são os principais heróis do Brasil que, na sua opinião, deveriam ser lembrados nessas comemorações dos 200 anos de independência?
Acho que os nossos grandes abolicionistas emergem como uma força muito grande. Tem pessoas escravizadas que infelizmente nem passaram para a História porque eram anônimas. Pegaram em armas, fugiram, fizeram quilombos, resistiram contra a escravidão. Alguns nomes aparecem marginalmente nos livros de história. Por exemplo: em 1838 houve uma grande fuga de escravos, durante uma rebelião no Vale do Paraíba. Um personagem que se destacou muito foi Manuel Congo, que era um líder importante na resistência à escravidão. Na minha formação escolar nunca ouvi falar de Manuel Congo…existem muitos personagens como esse que participaram da guerra da independência, das lutas do período da Regência. O que aparece mesmo, nesses 200 anos, é um Brasil branco, de ascendência europeia e geralmente masculino. Muitas mulheres pegaram em armas. Tem o caso famoso de Joana Angélica, na Bahia, e também mulheres que formaram quilombos, foram rainhas, imperatrizes de quilombos no interior do país – mas também não aparecem nos livros de história. Portanto, o imaginário brasileiro é branco, europeu e masculino.
Pela primeira vez na comemoração de um 7 de setembro, a escravidão, o racismo e o modelo patriarcal de sociedade, que pune a mulher, características que sempre marcaram a história brasileira ao longo dos últimos 200 anos, passaram a ser tema de debate, dentro e fora da academia. Você enxerga algum avanço do país em pelo menos começar a discutir de forma crítica a sua história?
Sim, e é por isso que eu insisto que nós devemos persistir na democracia, porque esse é um dos grandes frutos da democracia brasileira. O Brasil, infelizmente, é um país de construção autoritária. Desde a campanha das Diretas, em 1984, não temos ainda nem quatro décadas de democracia – mas é o período mais longo, em que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. Num ambiente de democracia, o que emerge com grande força? As discussões a respeito do que somos. Ou seja, os brasileiros chamados a participar da construção do futuro, participando dos partidos políticos, das instituições, botando voto na urna a cada dois anos, estão olhando para o passado para tentar entender quem nós somos hoje e quais são os desafios daqui para frente. É assim que se constrói uma democracia. Por isso é importante estudar história. Realmente nunca houve um interesse tão grande pela história do Brasil quanto hoje. Vou te dar um exemplo. Se você cresceu e estudou na escola ouvindo falar que a escravidão brasileira era boazinha, patriarcal, melhor do que em outros territórios escravistas e que o resultado é uma grande democracia racial, muito provavelmente você não vai ser a favor da lei de cotas nem eleger partidos e candidatos que se proponham a enfrentar a herança da escravidão, na forma de leis que combatam o racismo, de políticas sociais que enfrentem a desigualdade social – porque você vai achar que o Brasil é uma democracia racial e o problema está resolvido. Mas se a gente estudar história vai chegar à conclusão óbvia de que a escravidão brasileira foi tão violenta como em qualquer outro território e que nós, definitivamente, não somos uma democracia racial. O Brasil é um dos países mais segregados do mundo na geografia, nos números, nas estatísticas, nos indicadores sociais e no comportamento. O Brasil é um país racista. Por isso é importante construir o Brasil na democracia com base nas premissas corretas. Se você parte de premissas erradas, as escolhas do futuro também vão ser provavelmente erradas. Se existe alguma razão para sermos otimistas no Brasil de hoje – apesar do cinismo e do desânimo reinante — é pela construção da democracia, que começa a render seus frutos. Um deles é o estudo e a reflexão do que realmente somos. No livro 1889, falo do Brasil no século 19 como uma miragem, uma ilusão de ótica, que fingia ser europeu, parlamentarista, uma monarquia liberal, com barões, viscondes e liberdade de expressão. Mas a realidade das ruas era de pobreza, analfabetismo, escravidão e concentração de riqueza. Um Brasil que fingia ser uma coisa e era outra. Precisamos nos livrar desse processo de autoengano, de fingimento. Porque isso vai nos levar a um patamar de maior maturidade a respeito do que somos e as escolhas que fazemos daqui para frente serão também mais maduras, calcadas em coisas reais e menos imaginárias.
Um estudo recente do Instituto Locomotiva apontou que 71% dos negros foram vítimas ou presenciaram crime de racismo no último ano. Qual a melhor estratégia para combater o racismo estrutural que vigora no país?
Acho que existem muitas maneiras. Claro que lei que puna o racismo e denúncia na imprensa e em redes sociais são importantes. Mas a principal forma de racismo no Brasil não é a injúria racial – manifestada muitas vezes no calor de uma partida de futebol, numa loja de shopping center, numa empresa. É o racismo silencioso e cúmplice, de pessoas que acham que no fundo o Brasil não é racista. E que elegem, por exemplo, um candidato que durante a campanha eleitoral pronunciou discurso racista, usou expressões racistas. E acham tolerável morar e viver num país em que a imensa maioria da população vive abandonada à própria sorte e, geralmente no Brasil, pobreza é sinônimo de negritude. Quanto mais negra a cor da pele, maior a chance de a pessoa ser pobre, isso estatisticamente falando. Claro que existem pobres brancos no Brasil, mas a imensa maioria é negra ou mestiça – herança da escravidão. Quem acha que isso é razoável, moralmente defensável, é uma pessoa racista. É um racismo que não se expressa em público, mas se expressa na hora de botar voto na urna, na hora de contratar ou não uma pessoa na empresa, de dar ou não chance de uma pessoa ter oportunidades na vida. O primeiro passo é estudar e refletir. Temos de discutir muito esse assunto. Discutir nos livros, nas salas de aula, nas empresas, nas igrejas, nas famílias, nas instituições. Isso é muito importante. Essa transformação, mais do que por medida provisória, decreto ou lei, virá por uma mudança de consciência, por uma transformação cultural. Na hora que nós, brasileiros, independentemente da cor da pele, chegarmos à constatação de que temos um problema racial no Brasil, aí teremos condições de enfrentar o problema, de encontrar maneiras de resolvê-lo. É o que chamamos de segunda abolição – enfrentar a desigualdade social, dar oportunidade para as pessoas que nunca se expressaram, que nunca tiveram a chance de se realizar plenamente nas suas vocações e talentos se realizem. Aliás, isso não interessa apenas aos negros, deveria interessar também aos brancos. Estamos falando de capital humano. A riqueza das nações hoje, na era da tecnologia de informação, está aqui dentro, no conhecimento humano. Enquanto tivermos a imensa maioria da população abandonada, sem possibilidade de se realizar plenamente, o Brasil vai ser um país pobre, subdesenvolvido. Portanto, não se trata de uma soma de zero a zero – você perde e eu ganho, um transfere riqueza para o outro e fica mais pobre. Não, na hora que todo mundo tiver a chance de se expressar e se realizar plenamente, o Brasil inteiro vai ficar melhor, mais rico e mais desenvolvido. Todos temos a ganhar com essa segunda abolição.
Você acha que o Brasil de fato é um país independente?
A independência é um conceito muito relativo. Até 1808, com a chegada da Corte, o Brasil era uma colônia de Portugal, que detinha o monopólio do comércio colonial, proibido ter manufaturas aqui, não podia ter impressão de livros e jornais. Era uma dependência muito profunda, todas as leis, as autoridades, vinham de Portugal. Hoje, por exemplo, existe uma interdependência entre as nações, uma interdependência de tratados internacionais. Temos nações que são militarmente fortes, detêm arsenal nuclear e outras não, existe uma interdependência comercial, de troca de produtos e mercadorias, de tecnologia, de informação. Claro, não existe uma independência total. Mas o que faz um país realmente ser mais independente? Investir em sua própria gente. É isso que está faltando para o Brasil realmente se tornar cada vez mais uma nação independente. É o investimento nas pessoas que gera cultura, informação, tecnologia, um país que seja capaz de ganhar o seu primeiro prêmio Nobel – que nunca ganhamos –, um país que gere soluções de tecnologia, de software, de hardware, de produção de conhecimento. Enquanto não investirmos na nossa própria gente, na forma de enfrentarmos a desigualdade social, vamos ser cada vez mais dependentes de soluções, de tecnologias e de ideias que virão de fora. Por exemplo: na próxima epidemia da covid-19, que espero que não venha tão cedo, se a gente não investir em educação, ciência e tecnologia, não teremos o IFA, o insumo básico para produzir a vacina. E vamos ficar de novo com o pires na mão pedindo ajuda para quem tem essa solução. É esse tipo de independência que temos de conquistar daqui para frente.
(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 7 de setembro de 2022