redacao@jornaldosudoeste.com

Quando o galo cantou ao entardecer

Publicado em

No dia 16 de março, a CNN publicou o balanço das prisões efetuadas em Brasília após os atos criminosos de 8 de janeiro. O ministro Alexandre de Moraes concluíra, então, a análise dos últimos 129 pedidos de liberdade provisória e a situação era a seguinte:

Dos 2.182 presos por participarem ou terem envolvimento nas manifestações, 294 permaneciam na prisão (86 mulheres e 208 homens). Os primeiros a serem postos em liberdade provisória, a pedido da Polícia Federal, foram 745 idosos, ou com comorbidades, ou mulheres com filhos menores de 12 anos. Todos os presos nessa condição são cidadãos pacíficos que estavam acampados diante do QG do Exército e “poderão responder à Justiça por incitação ao crime e associação criminosa”. Terão que cumprir estas medidas humilhantes e limitantes:

Uso de tornozeleira eletrônica;
Proibição de deixar a comarca de origem;
Permanecer em casa no período noturno e nos finais de semana;
Obrigação de apresentar-se ao juízo da Execução da comarca de origem semanalmente;
Proibição de deixar o Brasil;
Cancelamento de passaportes;
Suspensão imediata de quaisquer documentos de porte de arma de fogo e de certificados CAC (caçador, atirador e colecionador)
Proibição de usar redes sociais;
Proibição de comunicar-se com os demais envolvidos nos atos.

Exceção feita aos vândalos e aos que os orientaram, contrataram, financiaram, etc., e que, com certeza, se contam entre os que continuam encarcerados, aguardando penas que bem merecem, os demais muito provavelmente integraram o coro do “não quebra, não quebra, não quebra!”. Por quê? Porque não são delinquentes, porque são tias do Zap, são chefes de família, que, acampados diante do quartel, ou indo à Esplanada, de modo civilizado, cantavam hinos e rezavam.

Contudo, são cotidianamente humilhados pelo noticiário que os trata como malfeitores. Enfrentaram o trauma da prisão, da restrição de direitos e o constrangimento de responderem a um processo por – vejam bem! – incitação ao crime e associação criminosa.

Qual o crime que esses nossos conterrâneos cometeram num país onde o governo compra congressistas, onde estão soltos os que enriqueceram roubando empresas estatais, onde é perigoso andar nas ruas, onde a vida humana e seus bens não merecem consideração e onde bandidos de verdade vão direto da audiência de custódia para casa e novos crimes?

Cometeram o crime de pedir socorro onde lhes pareceu que poderiam ser ouvidos quando, durante quatro anos, exercendo condição de cidadãos, não foram ouvidos pelo Congresso Nacional nem pelo Supremo Tribunal Federal. Sei que no esquizofrênico universo jurídico brasileiro deve existir alguma lei afirmando que desistir de falar às instituições e pedir socorro à porta dos quartéis é crime de pedir socorro e que juntar-se a outros para fazer isso é “associação criminosa”. Algo análogo, já se vê, a integrar facção tipo Comando Vermelho ou PCC, ou a planejar, com outros, o assalto a uma agência bancária, ou a organizar um mecanismo para tungar a Petrobrás.

Note-se: não tinham o menor poder de fazer acontecer algo, como, de fato, nada aconteceu. Agiram de modo pacífico, fazendo o que lhes pareceu necessário ao bem do país, dedicados ao que entenderam como tarefa cívica diante de tudo que testemunharam nos meses anteriores. Cantaram diante dos quarteis, inútil e sentimentalmente, como galo que cantasse ao entardecer para que o sol não se pusesse.

As cenas do retorno desses presos e presas ao lar, passados mais de dois meses sob as condições de uma prisão, só não ferem a sensibilidade de quem perdeu em algum lugar do passado atributos preciosos ao ser humano, como empatia, condolência, comiseração, misericórdia. São sentimentos que, nuns, morrem com a cobiça; noutros, com a ira; noutros, com o vício; noutros, ainda, com a experiência inebriante do poder.

Deixe um comentário