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Diálogos Públicos destacou questão racial como elemento estruturante do sistema repressivo no Brasil

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A necessidade de radicalizar a democracia, assegurando a todos igual proteção em seus direitos, foi a tônica dos debates que marcaram a terceira rodada do “Diálogos Públicos Ministério Público e Sociedade: Polícia Democrática e Direito à Segurança”, realizado nos dias 2 e 3 de outubro, em Salvador (BA).

Mais de 250 representantes de movimentos sociais, de Ministérios Públicos, de forças policiais e de pesquisadores debateram temas como políticas de pacificação, o controle externo da atividade policial e as dimensões sociais e políticas da violência no Brasil.

O primeiro dia de debates chamou atenção para a questão racial como eixo estruturante do sistema punitivo brasileiro e a necessidade de reformas estruturais nas políticas de segurança pública, que tem vitimado especialmente a população negra, seja a juventude das periferias, sejam agentes das forças policiais – em geral, também negros e de baixa renda.

“É preciso termos claro que a noção de justiça que se construiu no Brasil se deu a partir de elementos estruturantes de sua história: o genocídio de populações originárias, o sistema de sesmarias e o drama dos 300 anos de escravidão. Tudo isso conformou esse modelo penal que busca apartar e exercer controle sobre grupos específicos. Esse é o lastro histórico da sociedade brasileira, e a polícia, assim como as instituições do sistema de justiça, se comportam na manutenção dessa perspectiva, na qual algumas vidas parecem valer menos”, destacou a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que uma pessoa é assassinada no Brasil a cada nove minutos. Em 2015, foram registrados no País cerca de 60 mil homicídios – 73% das vítimas eram pessoas negras/pardas. A crise também atinge o sistema penitenciário: somente nos últimos 20 anos aumentou em quatro vezes a população carcerária brasileira – que já é a terceira maior em todo o mundo. Se o ritmo for mantido, até 2020 o País terá mais de um milhão de pessoas presas, e em 2030 o número deve chegar a dois milhões – o que demandaria a construção de cinco mil novos presídios.

“Temos um sistema que está em metástase. É um modelo que precisa ser urgentemente modificado. Pensar essas questões e construir caminhos para uma política de segurança pública efetivamente democrática é o objetivo dessa iniciativa – que já passou por São Paulo e Rio de Janeiro”, explica Marlon Weichert, procurador federal dos Direitos do Cidadão adjunto.

A vida sob risco permanente – A morte sistemática da juventude negra, a violência no conflito pela terra, a intolerância e os crimes de ódio, assim como a criminalização dos movimentos sociais, fizeram parte dos dois painéis que discutiram as dimensões políticas e sociais da violência. A proposta foi colocar no centro dessa discussão grupos que vivem sob risco permanente – incluindo o profissional de segurança pública, muitas vezes no fogo cruzado de uma política de segurança pautada na lógica do “combate ao inimigo”.

“A ideologia militarizada das políticas de segurança pública coloca o policial como herói. Não somos heróis. Herói não morre, não precisa ter condições de trabalho, salário em dia. Nós somos trabalhadores, assim como quaisquer outros, e queremos chegar com vida ao final do dia”, apontou o cabo Elisandro Lotin, da Associação Nacional de Praças.

O cacique Babau – liderança indígena tupinambá – e Keila Simpson, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, também fizeram a defesa da vida, lembrando que só crescem os números da violência contra esses e outros grupos mantidos à margem da sociedade. “É preciso que o tal ‘ciclo completo de polícia’ (que trata da atuação plena dessas instituições na prevenção, repressão e investigação) se transforme em ‘ciclo completo de direitos’”, defendeu Zezé Pacheco, da Conselho Nacional dos Pescadores.

Eduardo Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, ressaltou que a política de guerra às drogas tem legitimado número assombroso de mortes e de aprisionamento de pessoas negras – argumento também defendido por Alane Teixeira, do Instituto Odara: “os jovens negros e da periferia têm sido usados como bode expiatório na indústria do tráfico. São os eleitos para serem combatidos, enquanto quem verdadeiramente lucra nesse grande negócio permanece na segurança de suas casas”.

Responsividade e transparência da atividade policial – Outro ponto de debate esteve no controle da atuação policial. A Constituição atribuiu ao Ministério Público a função institucional de fiscalizar essa atuação – tarefa que foi problematizada pelos integrantes do painel “Controle Externo da Polícia – Por que tanta resistência? Por que não funciona?”.

“Só se pode controlar o que se conhece, e o Ministério Público não conhece a polícia. Além disso, toda a estrutura de justiça é forjada para uma produção quantitativa, e não qualitativa. Torna-se mais fácil, portanto, encaminhar a denúncia recebida do que devolver o inquérito policial”, apontou a promotora de Justiça Isabel Adelaide.

O procurador da República André Luiz Batista Neves também fez críticas ao modelo: “perdemos a chance, na Constituinte de 1988 e também na formulação da Lei Complementar 75, de colocar o controle externo da atividade policial no âmbito da tutela coletiva, e não na esfera da persecução penal, que tem uma perspectiva punitiva”.

A procuradora-chefe substituta do MPF na Bahia, Vanessa Cristina Gomes Previtera Vicente – que compôs a mesa de abertura –, e o procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Gabriel Pimenta Alves, acompanharam as atividades realizadas nos dois dias de evento.

Saiba mais – A série “Diálogos Públicos Polícia Democrática e Direito à Segurança” é uma realização do Ministério Público Federal (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do Instituto Sou da Paz e do Núcleo de Estudos de Violência da USP. Na Bahia, a atividade contou com a parceria do Ministério Público Estadual e da Procuradoria da República.

Recomendações – Como resultado, os Diálogos Públicos buscam apresentar recomendações para a superação do atual cenário de violência, da ineficácia do sistema de justiça, da letalidade estatal e da vulnerabilidade do profissional de segurança pública. Os resultados dos debates realizados na Bahia irão integrar a Carta Parcial de Conclusões, que elenca uma série de medidas para uma reforma institucional da segurança pública no Brasil. As propostas resultantes das rodadas em São Paulo e no Rio de Janeiro já estão publicadas.

Íntegra das apresentações – Nos próximos dias, estarão disponíveis no site do evento as imagens e vídeos das apresentações dos mais de 30 debatedores que integram o Diálogos Públicos na Bahia. Acesse: www.mpf.mp.br/dialogospublicos-bahia.

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