Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
Por Antônio Novais Torres
Na semana que passou, escrevi sobre a sacralidade da democracia dizendo que ela devia ser um dogma na consciência de cada um. O tema tinha a imposição da data de 15 de janeiro, quando o Brasil, há 40 anos, via surgir a volta da democracia. Nessa data, fomos eleitos, Tancredo Neves e eu, presidente e vice-presidente, na forma da Constituição.
Tenho, ao longo desses 40 anos, preservado a memória de Tancredo Neves para manter a minha obrigação moral de lembrá-lo como um dos heróis do sentimento democrático do país. A história o tinha preparado para essa tarefa. Ele era um homem que conhecia a política nacional e o Brasil profundamente. Essas qualidades o levaram a comandar o processo de derrubada do regime autoritário. Tancredo foi escolhido candidato justamente porque inspirava confiança ao país, pelo seu passado e pelos atos que marcaram sua coragem e sua determinação.
Na sua biografia como ministro de Getúlio Vargas, fora leal até o fim, acompanhando-o até a tragédia do seu suicídio. Nós o encontramos chorando, comovido, no enterro de Vargas, fazendo uma apaixonada oração fúnebre, na qual não pregava a revolta pelo que tinha acontecido, mas a conciliação, sua marca. A vingança não tinha lugar em seus lábios e, ao contrário do que os outros oradores pregavam, ele abandonava o sentimento de revolta para assumir a bandeira da conciliação nacional, pedindo que o Brasil não se dividisse no sangue e no gesto de Vargas.
Com Juscelino Kubitschek na crise da maioria absoluta, é Tancredo quem costura a solução, concretizada na posse do presidente. Juscelino sai brilhantemente da ameaça de não assumir a presidência para o sucesso do seu governo e a construção de Brasília, que o levou a um lugar grandioso em nossa história.
Tancredo foi preparado para desempenhar esse papel de conciliador, na ultrapassagem do regime militar em 1985, no ponto mais alto de sua carreira, comandando a engenharia política que nos levaria ao 15 de janeiro de 1985, que hoje lembramos e comemoramos: 40 anos de democracia.
No martírio da sua posse, surpreendido pela doença que finalmente o levaria à morte, sua preocupação em não se deixar operar para tomar posse não era uma vaidade pessoal, mas o ideal muito mais alto de concluir a transição democrática. Ele receava a volta dos militares diante da resistência do presidente Figueiredo de transmitir o poder ao vice-presidente, invocando uma inimizade pessoal comigo. Ouvi do ministro Leitão de Abreu — logo depois da retirada de uma comissão composta por Ulysses Guimarães, Leônidas Pires Gonçalves e Fernando Henrique — que, quando lhe comunicaram a decisão da minha posse, o general Walter Pires, ministro do Exército, lhe visitou e afirmou que iria imediatamente voltar ao ministério e dirigir-se aos comandos do país inteiro para juntos pedir a continuidade do governo do presidente Figueiredo e abortar a transição para a democracia.
O ministro Leitão conta ainda que, nesse instante, o dissuadiu com o argumento de que ele já não era mais ministro do Exército, uma vez que o Diário Oficial publicara a sua exoneração do ministério. Assim, a democracia não morreu naquela noite. E Tancredo, quase agonizante, resistia à sua operação, que todos os médicos julgavam salvadora. Para demovê-lo dessa resistência, o seu sobrinho Dornelles contou-lhe uma inverdade: a de que havia estado com o presidente Figueiredo e este assegurara que transmitiria o governo à minha pessoa. A preocupação de Tancredo era a conclusão do processo democrático e, com essa comunicação do Dornelles, ele julgava que sua missão estava concluída e a transição democrática, realizada. Disse aos médicos: “Agora podem me operar. Nossa luta está vitoriosa”.
É justamente por isso que Afonso Arinos disse que muitos brasileiros deram a vida pelo Brasil e Tancredo deu a morte. Sua grande virtude e ação como político era o que Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, encarnou no Império: a conciliação. Seu sonho de assumir a Presidência não era oportunismo, nem uma opção pragmática e circunstancial, e, sim, uma questão de princípios: unir o país e não deixar que o medo de represálias fosse o combustível da continuidade do autoritarismo.
No momento, assistimos à maior nação do mundo, os Estados Unidos, vacilar no exemplo dos ideais dos pais fundadores da democracia americana e no sonho de Jefferson da busca da felicidade. Trump nega esse destino dos Estados Unidos de solidariedade, de luta pela democracia liberal e liberdade de mercado com ameaça de uso de sanções, na tese de que uns são condenados à salvação, e outros, à perdição.
Tancredo é o estadista conciliador e Trump, o espalha-brasas, um político menor. Que o exemplo do nosso estadista, de união e convergência, seja símbolo para todos os políticos e inspiração para as gerações futuras.