Quando criança Ele foi um bebê amado, muito amado.
Por ser assim tão querido, tinha todas as suas necessidades atendidas.
Sempre.
Bunda limpa, barriga cheia, quentinho quando fazia frio, fresquinho quando calor, comidinha e soninho quando necessidade disso tinha, muitos brinquedos, diversão e muitos nãos.
Ele ouvia milhares de nãos o dia inteiro, todos os dias.
Conforme foi crescendo, mais “nãos” foi ouvindo.
“Não pode enfiar o dedo na tomada.”
“Não pode brincar com faca.”
“Não pode correr para o meio da pista.”
Ainda bem que escutou todos esses. Se não os tivesse ouvido, onde estaria?
Nessa mesma época em que esses “nãos” foram ditos, Ele tinha hora para dormir, comer tomar banho, trocar de roupa, brincar, ir para o parquinho, passear…
Cada coisa tinha uma hora determinada, tudo cronometrado.
E entre um beijo, um abraço, um carinho uma oração, eram milhares de “não pode isso”, “não pode aquilo.”
E o tempo foi passando…
Na parede do quarto, tinha sua rotina estabelecida, tudo ilustrado para que Ele compreendesse o que deveria fazer a cada dia.
De quando em vez havia uma “festa” em que era colocada e explicada uma nova figurinha, ou seja, mais uma coisa na rotinha.
As coisas só apareciam. nunca iam embora daquele quadro.
No momento em que Ele estava fazendo tudo direitinho, bem acostumado, aparecia outra e outra coisa.
E foi assim que, além daquelas coisas que todo mundo faz para sobreviver como oração, escovar os dentes, pentear os cabelos, tomar café, Ele também arrumava a própria cama, guardava seus brinquedos, enxugava as colheres, colocava o lixo fora e enchia as garrafas que vão à geladeira de água.
E, quando passou a ir à escola, tinha que estudar todos os dias e lavar o uniforme para o outro dia.
Na hora das refeições, tinha que comer tudo que era colocado no prato. Doces, só no fim de semana e sorvete uma vez ao mês.
Uma vida lotada de beijos, abraços, carinhos e regras, muitas regras, nãos, milhares de nãos.
Ele, que não sabia que existia outro jeito de viver achava tudo absurdamente normal.
Mas o tempo foi passando e seus olhos foram sendo abertos…
Algumas vezes queria mudar a ordem das coisas, negociava com quem estava no comando e conseguia.
Outras, em alguma parte específica da rotina, queria fazer diferente e não tinha cristão que convencesse quem “mandava no pedaço” que era possível ser de outra maneira.
Tinha dia em que queria era fazer tudo do “seu jeito” e partia tocando o louco.
Quem mandava chegava junto, conversava, explicava que, se Ele não fizesse conforme o programado, as coisas iriam se atropelar, argumentava e tal.
Tinha hora em que Ele obedecia e voltava para o programa, tinha hora em que batia o pé.
Quando resolvia sapatear, o embate era civilizado, mas ferrenho e Ele sempre acabava tendo que cumprir as ordens obrigado.
Até que um dia…
Até que um dia, Ele já crescido, resolveu fazer uma reunião com o comando superior e apresentar seus argumentos para não mais ter que cumprir a rotina, agora já escrita em sua parede, nem seguir as regras, como dormir cedo, comer doce só no fim de semana e todas as outras coisas que Ele sempre achara uma grande besteira.
Disse que já podia decidir o que tinha que fazer e quando fazer..
O comando superior ouviu em silêncio cada um dos seus argumentos, que obviamente não foram só esses, e deu o seguinte veredito:
“Damos a você uma semana para viver do jeito que achar que deve: dormir a hora em que quiser, acordar a hora que quiser e fazer tudo que quiser. Mas, assim, o que é sua obrigação fazer, ninguém fará. Ao fim da semana, voltaremos a nos reunir para fazer uma avaliação”
Ele concordou rapidamente e, quando já ia levantando todo feliz, satisfeito com o que tinha conseguido, achando-se o rei da negociação, teve sua atenção chamada pelo oficial do comando superior:
“Você já reparou que no meu quarto também tenho uma rotina escrita?”
Ele conhecia a rotina e balançou a cabeça dizendo que sim.
“Então, lá tem vários itens relacionados que se referem especificamente a você. Nessa semana em que você estará vivendo de acordo com as suas regras, eu também deixarei de cumprir a minha rotina no que diz respeito a sua pessoa. Pode ser?”
Sem pensar, concordou.
“Amanhã, começaremos, certo?”
Ele saiu da sala e foi cumprir suas últimas obrigações antes da semana de libertação.
Terminou o que tinha que fazer e foi dormir no horário de sempre.
No outro dia, acordou e ouviu o silêncio da casa.
Entrou e saiu, procurou onde estavam todos, não tinha ninguém.
Telefonou desesperado:
“Onde está todo mundo? Eu precisava ir à escola hoje!”
O comando, do outro lado da linha:
– Esqueceu a proposta que me fez?
Ele despediu-se contrariado:
“Vou ver o que faço aqui.”
Desligou e deitou no sofá, foi assistir à televisão: sem arrumar a cama, sem escovar os dentes, sem a oração, sem tomar café nem trocar de roupa.
Que maravilha.
Sem regras.
Deu a hora do almoço e ninguém apareceu.
Outro telefonema:
“Onde está todo mundo? Eu preciso comer!”
O comando, do outro lado da linha:
– Esqueceu a proposta que me fez?
Ele despediu-se contrariado:
“Vou ver o que faço aqui.”
Comeu um pacote de bolachas, bebeu suco, comeu chocolate.
Foi até seu quarto e encontrou sua cama bagunçada, tudo jogado e, por um momento, ia arrumar as coisas, foi quando se lembrou: estou de folga.
Abandonou tudo e se entregou ao vídeo game.
Quando todos à noite voltaram para casa, Ele viu que surgiram uns sacos no quarto dele.
“O que é isso?”
– O lixo.
“Como assim?”
– O que é sua obrigação ninguém fará por você, como não posso ficar com esse lixo na cozinha trouxe aqui pra ver qual a solução para esse problema.
Ele ficou indignado, foi lá e colocou o lixo fora.
Mais tarde o escorredor de louças estava lotado sobre a sua cama.
Ele, apesar da raiva, nem reclamou, só enxugou e guardou.
Com o passar da semana as coisas foram ficando verdadeiramente complicadas: Ele perdeu provas por não conseguir chegar na hora, já que estava indo de ônibus, seu quarto estava parecendo uma zona de guerra, a cada pouco, aparecia sobre sua cama um objeto estranho, parte das atividades que eram suas e ninguém estava fazendo, tudo sendo atropelado e Ele sem qualquer domínio da situação,
No terceiro dia de “liberdade”, Ele reuniu o comando superior:
“Gostaria de negociar algumas coisas nessa semana sem regras.”
– O quê?
“Não estou aguentando comer só bolacha, não estou dando conta de acertar os horários para ir de ônibus, também meu dinheiro já acabou. Não dá para toda hora ter um saco de lixo no meu quarto nem as louças em cima da minha cama. O que pode ser feito para que a situação fique mais fácil?”
O comando superior sorriu:
– Você volta fazer a sua parte que eu volto fazer a minha.
Ele ainda tentou argumentar, mas como viu que estava mais perdendo que ganhando, resolveu:
“Tudo bem, eu volto a cumprir minha parte, mas é só por enquanto e sob protesto!”
O comando superior sorriu, na certeza de que. um dia, Ele agradeceria por ter tido tantas regras logo no começo da vida.
Vivi Antunes é ajuntadora de letrinhas e assim o faz às segundas, quartas e sextas no www.viviantunes.com.br