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Contrato apalavrado

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As crianças brincavam no parque do jeito que só elas sabem fazer: despreocupadas e ruidosamente felizes.

Eu que só queria me acomodar naquela sombra para ler enquanto esperava.

Sentei-me, abri o livro que não cheguei a ler um só parágrafo, pois à minha frente desenrolava-se um espetáculo:

“Você só pode estar brincando, Betinho.”

– Claro que não, João! Tô falando sério.

Dois meninos mais ou menos do mesmo tamanho que aparentavam ter a mesma idade.

Betinho comprido e magrelo é dono de enormes olhos negros.

João um pouco menor que o amigo é tão magrelo quanto e tem cabelos lisos que ele luta para manter longe dos seus olhos cor de mel.

Eles estão sentados no chão, concentrados em volta de alguma coisa que eu não consigo ver o que é.

E eu, escondida atrás daquele livro, só quero descobrir o motivo daquela discórdia.

“Betinho, essa parte do jogo eu que inventei. Lembra?”

– Eu lembro, João.

“Então, Betinho como eu inventei essa parte, eu posso mudar essa regra. Foi isso que nós combinamos: as regras que cada um inventa, só quem inventou pode mudar!”

João está visivelmente irritado com o amigo mais comprido.

Betinho, tinha cara de que se lembrava de cada uma das cláusulas do contrato que não havia assinado, mas havia apalavrado com seu amigo.

Mesmo assim, aquela carinha que emoldurava seus belos olhos, dava indícios de que ele não iria arredar o pé de onde tinha fincando:

– João, eu sei que foi você que inventou essa regra. Eu sei o que a gente combinou. Mas se mudar agora eu que tava ganhando o tempo todo vou quase zerar no placar. Vou ficar lá atrás na tabela do campeonato! Você tá querendo é isso?

Eu de onde estava, ouvia muito bem, mesmo sem ver do que se tratava a conversa.

Como não conhecia o problema, ou seja: não entendia qual era o jogo e muito menos as regras que eles discutiam, ficava prestando atenção, tentando adivinhar o que fariam pela expressão de cada um.

É, realmente o livro que há tempos fora abandonado, não estava nada interessante.

“Não, Betinho, eu não quero que você se dê mal! E nem tem como se dar. Os pontos que você ganhou ninguém tira!”

– Não?

Falou o menino completamente admirado.

“Não, seu bocó! Eles foram conseguidos obedecendo à regra. A regra deixou de existir, agora só os pontos que você ganhou existem, as regras não!”

Betinho não parecia ter entendido muita coisa, mas já que os pontos não tinham fugido, então estava tudo bem.

Eles continuaram debruçados sobre o jogo que eu não ainda conseguia ver.

É claro que minha vontade era sentar ali no chão, perguntar do que se tratava e me inteirar dos fatos.

Mas me segurei.

Afinal, se fossem dois adultos eu não faria isso.

Então manteria minha tradição particular de respeitar as crianças.

Ainda deu pra escutar Betinho querendo acabar com uma outra regra do jogo.

Seu argumento era o seguinte:

– Essa regra foi colocada depois que todas já estavam prontas. Fui eu que fiz, mas colocamos fora do tempo, depois que já tínhamos começado o campeonato. Acho que podemos tirá-la também, e junto com sua saída tirarmos todos os pontos ganhos por sua causa. Afinal, a regra desses pontos, entraram depois, então eles são ilegais.

Fiquei espantada com os argumentos do moleque.

Só aí me dei conta que o livro ainda estava aberto sobre meus joelhos.

Era minha hora de ir.

Fechei o livro e deixei para trás Betinho, João e a discussão das regras que entram, permanecem ou saem daquele jogo que certamente um dia todos saberemos jogar.

Se não o jogo, ao menos a tolerância na argumentação daquilo que é contrário a seus próprios interesses.

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