O brasileiro nasce num país de abundância, mas contraditoriamente cresce na escassez. Vive um conflito íntimo-social entre esperança e mesquinharia. A primeira advém da intuição de viver num país de riquezas naturais exuberantes e alegrias contagiantes, enquanto a segunda justifica o endividamento das elites egoístas por não repartir seu prato de abundância. O resultado deste conflito não poderia ser outro que a desconfiança, a insegurança e o protesto.
Mais que o despertar de um gigante, digo que o Brasil desafia seus fantasmas históricos.
Alguns efeitos são vistosos. O aumento das tarifas de ônibus em várias capitais brasileiras motivou protestos de seus usuários em Porto Alegre, Natal, Salvador, Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo. Menciono somente algumas cidades onde os protestos tiveram repercussão na imprensa nacional, embora o aumento de tarifas tenha ocorrido em várias cidades brasileiras. A prioridade sobre o uso do carro e o desuso do transporte coletivo é evidente no Brasil. O governo federal tenta encobrir esta situação através do Plano Nacional de Mobilidade Urbana.
Houve também manifestações contrárias à política de desalojamento, desapropriação de terras e uso de dinheiro público no financiamento de construções e reformas prediais para os eventos esportivos vindouros. Uma destas manifestações é a do movimento Copa para Quem? em Brasília. Políticos disseram que os manifestantes que queimaram pneus e pararam o trânsito no Eixo Monumental estão interessados em prejudicar a imagem do Brasil através dos protestos contrários à Copa e às Olimpíadas; porém e de uma perspectiva bem diferente, digo que há brasileiros preocupados em difundir a imagem fiel e verdadeira da escassez do país.
O Brasil não é o país do futebol como muitos pensavam, mas o país dos grandes negócios. Há os que previram-no o papel de nova América (título nobilitário que se deram os Estados Unidos na falta de outra terminologia mais arrogante). Assim, junto as peças do quebra-cabeça tupinica para oferecer uma explicação coerente de como o Brasil joga com a abundância e a escassez sem que o árbitro deste jogo estipule as regras de atuação do Estado e do mercado.
A tônica governamental e da Rede Globo é o crescimento econômico e a necessidade de investir na infraestrutura portuária (principalmente em Paranaguá e Santos) devido ao acúmulo recorde de grãos de soja nos portos à espera de exportação. Esperam que o povo brasileiro comemore o aumento das exportações. Enquanto isto, os produtores no interior do país expandem seu cultivo de soja com baixa sustentabilidade ambiental, massacram índios e enganam o povo brasileiro com a insegurança alimentar. O aumento das exportações de poucos produtos dessarte reduz o cultivo de alimentos básicos, que encarecem e faltam na mesa dos brasileiros.
Bem-aventurado será aquele que fizer bom uso do sincretismo de costumes e ideias que o Brasil herda de muitas civilizações. Malgrado a impossibilidade do consenso, a nossa abundância está não só nos frutos pródigos da natureza, mas também na convergência da diversidade, que forma o ser brasileiro e o transforma com o advento de outras matrizes civilizatórias.
Nossa abundância, por vezes, alimenta o desperdício dos mais fortes e perpetua a escassez dos mais fracos. Nesta relação desigual de forças, os descontentes ganham entusiasmo por acreditar na energia da convergência da diversidade e entendê-la a seu favor. Só assim recuperaremos o encanto no Brasil tirando-o das mãos das elites impostoras, mendazes e predadoras.
O sofrimento do nosso povo não se pode converter num Favela Tour ou, em breve, em pacotes turísticos desportivos. Não se brinca com a imagem da abundância e a discrição da escassez. Todo brasileiro tem o direito de protestar – como tem ocorrido em todo país por motivos vários – sem que se lhes atirem balas de borracha ou gases lacrimogêneos como se fossem criminosos.
A dialética entre abundância e escassez mostra que o país mudará de dentro e não de fora.