Brumado, 01 de novembro de 2011
Prezado Mestre e poeta Monteiro,
Vamos a mais uma das nossas missivas. Agora dessa forma. Os nossos sete anos de versos trocados em cartas, já sacramentaram o nosso gosto. Mas, nada impede que possamos fazê-los quando se nos aprouver. Temos intimidades para isso. Que sejam cartas, é o que importa.
Acho que até já lhe falei desse meu prazer. Das cartas familiares às românticas, estas para as prendadas moças da minha adolescência. Não se salvaram as primas. Às vezes, feito Júlio Louzada, um famoso conselheiro sentimental, acho que da Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro. Faz tempo!. Aprendi a escrevê-las com esmero e encantamento. Depois vieram outras. Li várias obras de autores famosos e, mais recentemente, “Cartas entre amigos”, de Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind, o seu engenheiro calculista.
Confesso-lhe, Monteiro, que este livro reativou o meu lado missivista. Não pela expressão do gênio da arquitetura, que, aliás, não foi o foco da obra. Mas, sempre que o assunto vinha à tona, não foram os aspectos estruturais que se destacaram entre eles, mas o sentido mais profundo da arte empreendida, desafiando o convencional, extasiando os olhos do mundo com os seus projetos arquitetônicos, sem que o cenário natural fosse desmerecido em nenhum momento, como, no caso, o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, ou mesmo em João Pessoa, cujas formas são de uma ousadia artística impressionante. Não me aventuro a outros comentários.
Além disso, eles falaram dos mais diversos assuntos. Enveredaram pela vida dos grandes filósofos de todos os tempos, revelaram aspectos das suas filosofias, desde o Oriente ao Ocidente, teceram pertinentes comentários sobre a vida política do Brasil e a sua literatura, enfim, a obra foi um brinde ao prazer da leitura, com a qual presenteei a um amigo.
Também, assim, são os seus cordéis, não raros, são verdadeiras cartas, sobretudo quando revelam a sua angústia pelas injustiças e desigualdades, quando denunciam as mazelas do Poder, quando defende a Natureza, quando prega a educação e muito mais. São como epístolas, onde o conhecimento espontâneo flui na cadência dos versos e da sua experiência. Acho que foi por isso que a nossa correspondência vingou. Vamos, pois, em frente! Falando do que quisermos e trocando notícias.
Mudemos, agora, o tom da prosa. Como se diz: caiamos na real!
Um calor infernal a arde por aqui, o que não é novidade, porém, agora, sob a expectativa de ficar muito pior, caso a tradição de “Todos os Santos” não se confirme amanhã, com o anúncio dos serviços de meteorologia, e a crença do povo, de que choverá abundantemente. Aliás, nem sei se isso aconteceu nos últimos anos, pois não é exagero dizer que não me lembro de uma chuva aqui em Brumado, há muito tempo.
Tenho feito algumas viagens pelas redondezas e vivo estarrecido com a funérea paisagem que se abre aos meus olhos. O gado vagando no descampado das mangas para cima e para baixo, a procura do que comer, do que beber, sem nada encontrar. Os poucos criadores que ainda dispõem da salvadora palma, vão amenizando o mal, mas o gado já se enfastia disso, se não misturada ao caroço de algodão, cuja carestia e raridade impossibilitam a aquisição pelos mais fracos. Enfim, já não há mais nada com que possam se valer nessa desminliguida caatinga, que teimosamente subvive.
A cidade parece não se dar conta disso. Toca a sua rotina, enquanto o espectro da calamidade ronda sorrateiro e sinistro o seu entorno, onde pontilha verdejante, o Juazeiro, quem sabe, como o único reduto da imorredoura esperança de quem sempre viveu enraizado nessa terra, até esvair-se a última gota.
A periodicidade da estiagem já não existe. Agora, tornou-se perene, e não se ouvirá como antigamente, referências às desastrosas secas, que provocaram o êxodo de tantos Severinos e serviram de mote aos poetas, cantadores, cineastas, escritores, por esses sertões, para exibirem essa face cruel da realidade, que nem para isso serve mais, pois esse trágico atrativo escamoteou-se na rotina do desenfreado urbanismo, onde a indiferença, a desigualdade e a injustiça tomam assento em todos os Pretórios, perpetuando a miserabilidade.
Até quando, não sei!
Sinto-me pessimista, diante das possíveis medidas anunciadas sob os laivos dos crônicos paliativos. Refletindo bem, nem mesmo sei quais sejam. E as que forem, são extemporâneas. Continuarão sendo, pois as nossas reservas naturais foram devastadas ao longo da nossa história. Sem regionalismos. Porque o Nordeste é Brasil. As dicotomias são falsas como colocadas politicamente. E, aí, se situa a razão dos nossos atrasos estruturais e a inteira degradação da nossa sociedade. Não é verdade?
Só há mesmo uma solução para tudo isso, como me disse, um dia, uma catingueira nativa da minha estima, ao perguntar-lhe, sobre o que um Presidente poderia fazer para melhorar a vida das pessoas, e ela, sem titubear, no alto da sua sabedoria, respondeu-me:
“ Só muita chuva no chão e fartura nas roças, o resto Deus ajuda”.
Quanta verdade incrustada na fala de quem nunca foi à Escola ou recebeu privilégios na vida, ao externar a sua convicção, que inverte a lógica fatalista do “Deus dará”, para acreditar-se na força propulsora da Natureza, quando as chuvas chegam, e com o resultado do trabalho a fartura também chega, para merecer as bênçãos, agora, sim, Divinas.
Ah, Monteiro, enquanto escrevo essas linhas, algumas nuvens se anunciam ao Norte. Essas são boas. Promissoras. Que chova cada pingo um pote essa noite, para lavar a dolorida espera. E se chover o que tem merecido a caatinga, quero que as minhas mágoas desçam aos borbotões pelas suas artérias e se afoguem bem distante, para só restar a fartura profetizada por Lia, a nativa de quem falei acima.
Assim, encerro esta carta, tão dura, tão sentida, como a saudade que sinto da minha mãe, que após 95 anos foi para longe de nós, há poucos dias. Desculpe-me, pois, a minha dor!
Grande abraço, do seu amigo aprendiz de poeta
Zewalter