Capítulo do trabalho de Conclusão de Curso, na íntegra: Mapa da Violência em Vitória da Conquista _ Capítulo I
Vitória da Conquista uma cidade refém do medo e da violência
Por Natália Silva
A violência nas médias e grandes cidades não é somente um problema de Segurança, mas também de Saúde Pública. Vitória da Conquista é a terceira maior cidade da Bahia e apresenta índices preocupantes, chegando a figurar em 11º lugar entre as áreas urbanas mais violentas do mundo, em 2017, segundo o levantamento feito pela ONG mexicana Segurança, Justiça e Paz, que elabora o índice considerando o número de homicídios por 100 mil habitantes, em cidades com mais de 300 mil habitantes.
Foi nesse contexto que o JS recebeu o Trabalho de Conclusão de Curso “Mapa da Violência em Vitória da Conquista”, apresentado para a obtenção do título de Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), por João Pedro Marcelino Teixeira. Por entender ser de interesse de toda a região saber mais sobre o histórico de violência no município que é um polo de Saúde, Educação e Comércio, o JS estará, a partir desta edição e em outras duas edições, publicando um série de reportagens que foram pautadas a partir dos capítulos do Trabalho de Conclusão de Curso ‘Mapa da Violência em Vitória da Conquista’. Na versão digital, o leitor encontrará o capítulo na íntegra, escrito pelo autor, e uma adaptação em vídeo que também será veiculada em nossas redes sociais.
Antes de esmiuçar os índices de violência em Vitória da Conquista de 1996 a 2016, período de recorte do trabalho, o Mapa da Violência apresenta os padrões de ocorrência no tempo, fazendo uma breve consideração sobre a dinâmica da violência no cenário regional e nacional e apresentando as características histórico-geográficas do município e avaliação das taxas.
A segregação social em Vitória da Conquista tem origem na
formação econômica da cidade
Fernanda Costa – especial para o JS
Vitória da Conquista, com uma população estimada de 338.885 habitantes para 2018, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), é a terceira maior cidade do Estado e, excetuando as Regiões Metropolitanas, a terceira maior do interior do Nordeste. A origem do povoamento está, segundo relatam historiadores, relacionada à busca de ouro e à introdução da atividade pecuária e, posteriormente, à introdução da cafeicultura. Graças à sua localização geográfica privilegiada – é considerada o mais importante entroncamento rodoviário do Nordeste – Vitória da Conquista, a partir dos anos 40, com a abertura da Rodovia BR-116 (Rio/Bahia), se desenvolveu como centro comercial – varejista e de serviços – passando ao longo dos anos a centralizar cerca de cem municípios do Sudoeste baiano e do Norte de Minas Gerais.
Entre os anos 50 e 60, tendo como referência a Rodovia Rio/Bahia, que dinamizou o crescimento econômico e social, a cidade se dividiu territorialmente em Zona Leste e Zona Oeste. Centro, Recreio, Candeias e Urbis I são os principais Bairros da Zona Leste. Já a Zona Oeste é composta, entre outros, pelos Bairros Brasil, Patagônia, Vila Serrana e Urbis IV e V. Apesar dessa divisão física marcar a segregação socioespacial, que há atualmente na cidade, a Rodovia Rio/Bahia, segundo historiadores, não pode ser apontada como responsável pela separação.
A partir de 1975, com o incremento da agricultura, mais especificamente da cafeicultura, fomentada com financiamentos subsidiados por instituições financeiras oficiais, houve um aumento populacional na cidade, mais especificamente na Zona Leste, como explica o geógrafo Rosalve Lucas Marcelino, 55, professor adjunto do curso de Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb): “A cidade virou o centro econômico da região. As riquezas das pessoas eram derivadas dessa atividade de serviços. E essa população abastada procurava um lugar para morar que ficasse próximo ao centro comercial”.
Ainda em meados da década de 70, tendo por objetivo incentivar o aumento populacional e assegurar o desenvolvimento econômico e social, o Governo Federal iniciou a implantação de diversos programas de habitação [BNH (Banco Nacional de Habitação, agente financeiro da política nacional de habitação do Governo Federal destinado, especialmente, às populações de baixa renda); Urbis (Urbanização e Habitação da Bahia S.A., empresa de economia mista criada pelo Governo do Estado para, entre outras atribuições, cuidar da política habitacional para famílias de baixa renda] e Inocoop [Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais, que através de convênio com o Governo do Estado, atua na construção cooperativista de habitações populares], cada um com suas próprias características. Nas habitações da Zona Leste, uma das especificações do Estado para a obtenção da moradia era ter uma renda mensal que fosse compatível com a da classe média na época. Resultando em um crescimento no número de pessoas de poder aquisitivo considerável para aquela parte da cidade. Os programas de habitação nessa área incentivaram também a abertura de loteamentos. Como a Zona Leste vinha desenvolvendo moradias de acesso apenas à classe média, os loteadores (proprietários donos de lotes de terra), começaram a perceber o potencial de crescimento da área e da possível valorização do seu patrimônio, então começaram a colocar seus lotes a venda. Os loteadores eram os responsáveis por definir preço e tamanho dos lotes, ou seja, definindo assim a configuração socioeconômica dos loteamentos. Pelo crescente desenvolvimento da Zona Leste, graças a proximidade ao Centro Comercial e ao surgimento de habitações voltadas ao público de classe média, ela chamava cada vez mais atenção do poder público. Pelo desejo do crescimento urbano da cidade, a Prefeitura investiu na infraestrutura dessa área. Esse investimento funcionava como atrativo para a Zona Leste, valorizando mais ainda aquele espaço. Essa intervenção do poder público municipal tinha por objetivo atrair investimentos em empreendimentos comerciais para a cidade, mais especificamente para a Zona Leste.
O primeiro Plano Diretor Urbano (PDU), legislação que trata da questão urbana do município, data de 1976, período em que houve uma grande expansão populacional da cidade. Esse Plano seguia a linha de raciocínio do poder público municipal da época, que era tornar a cidade atrativa aos investimentos financeiros em empreendimentos produtivos. A intenção era abordar de que maneira deveria ser ocupado o solo urbano e onde as atividades comerciais deveriam estar organizadas. Assim, o PDU indicava que a Zona Oeste era destinada à populações proletárias, onde o valor dos lotes eram mais baixos e, consequentemente, o seu tamanho também. A Zona Leste era onde os lotes eram maiores e mais caros.
Dentro dessa dinâmica urbana existe a valorização imobiliária, ou seja, qual a realidade socioeconômica que aquele imóvel se destina. Essa valorização se apoia no tripé custo-qualidade-utilidade. Então, a área será mais valorizada (e mais cara) se ela tiver uma boa infraestrutura, se tiver um desenvolvimento comercial, etc. Dessa maneira, as áreas urbanas de Vitória da Conquista se desenvolveram baseadas nesse tripé, resultando na política de preços atuais, onde a Zona Leste é mais cara e a Zona Oeste é menos valorizada, em comparação.
A realidade socioeconômica do espaço influencia na política de preços, resultando em quem pode acessar o local. Impondo como barreira social o poder econômico. “Os investimentos imobiliários têm sido mais para esse lado (Zona Leste), do que para o outro lado da BR-116 (Zona Oeste), porque aqui tem muito mais a questão da valorização imobiliária. E por que aqui é mais valorizado? Porque as pessoas preferem vir para cá. Então existe uma separação virtual das próprias pessoas ao procurar suas residências e os preços é que vão formar um tipo de barreira. A própria valorização imobiliária serve para fazer essa distinção. Então a BR na realidade é um indicador, mas ela não é responsável por essa segregação. A própria dinâmica financeira, a valorização imobiliária é que provoca essa separação”, conta o professor Rosalve.
As políticas públicas passadas, no âmbito do desenvolvimento urbano, resultaram na clara segregação da população. Esse fenômeno pode ser compreendido como segregação socioespacial, que é a segmentação da cidade em grupos sociais dentro de um determinado espaço físico. Essa separação é comum em cidades médias e grandes, como em Vitória da Conquista. “Na cidade segmentada, as melhores ‘fatias’ estão nas mãos das pessoas que têm maior capital. Locais onde ninguém quer ir, ou ninguém deve ir, seja por questões de saúde, salubridade, ou questões de risco, distância, acabam ficando com os menos favorecidos, com a classe trabalhadora, que não conseguem pagar por um espaço, ou não tem amparo ou meios para ocupar espaços na cidade mais dignos. Então a segmentação da cidade é a distribuição das forças políticas, forças econômicas e é o retalhamento da unidade da cidade”, afirma Gerardo Angel Bressan Smith, 54, arquiteto e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo de uma faculdade privada de Vitória da Conquista.
Essa segregação influencia não somente no pertencimento dos grupos sociais à certas áreas, mas também em como eles vivem a cidade, aos bens e direitos que têm acesso. É de responsabilidade do poder público que o indivíduo possa usufruir de estrutura e espaços públicos de qualidade, com igualdade de utilização e com um ambiente urbano digno para todos. Michael Farias Alencar Lima, 33, diretor de Assistência Social da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Vitória da Conquista, reconhece que a cidade tem diversas realidades socioeconômicas, mas afirma que a gestão atual tem se esforçado para dar uma melhor qualidade de vida para esses indivíduos: “Nesse primeiro momento, o Governo procurou compreender as dinâmicas desses territórios. Agora estamos catalogando e sistematizando todos os dados, para a partir daí fazermos análise e entendermos quais são as principais demandas relacionadas à essas populações. Conseguindo assim atender as demandas manifestadas dentro dos territórios e criar, inclusive, um processo de planejamento das ofertas públicas ancoradas nas necessidades desses indivíduos e famílias que vivem dentro desse território. Todas essas desigualdades que são manifestadas nos espaços urbanos são objeto também de nossa intervenção”, aponta.
Ainda nesse sentido, Michael Farias explica que o poder público municipal procura criar estratégias que potencializam a sua participação na vida dessas pessoas: “Por entender a dificuldade que essas pessoas têm para acessar as políticas públicas, surgiu a ideia da Prefeitura Móvel, de ir até os Bairros, construindo um diálogo intersetorial que permita efetivamente às pessoas acessarem os seus direitos. O conjunto dessas ações públicas (água, luz, Saneamento, Segurança, Educação, Saúde) materializam o sentido real de proteção social, que é a presença do Estado na vida das pessoas, como forma de garantir o acesso aos seus direitos”, completa.
Mas para Aline Arruda dos Santos, 33, secretária da Associação Comunitária de Moradores do Loteamento Bateias II, o Governo Municipal tem deixado muito a desejar, principalmente na questão da infraestrutura. Aline conta que o Bairro onde mora enfrenta muitas dificuldades, além de asfalto e transporte público de má-qualidade, matagal nos terrenos baldios e coleta de lixo feita por uma carroça, a principal dificuldade é o acesso ao direito básico da Saúde.
Segundo a secretária, foi por conta desse problema, que perdura por muito tempo, que ela decidiu fazer parte da Associação, para tentar trazer uma resposta para a situação que se arrasta e não parece ter uma solução que beneficie os moradores da localidade. “Somos atendidos pelo Posto de Saúde da Urbis V e hoje eles (a Prefeitura) estão querendo deslocar os moradores daqui para o CAE II que fica no São Vicente, tendo apenas um ônibus que passa aqui de 40 em 40 minutos, ou mais tempo, para que transporte os moradores daqui até perto da Lauro de Freitas, onde eles ainda vão descer pra poder chegar no CAE II [Policlínica de Atenção Básica São Vicente]. Então, pequenas tramitações de logísticas fazem com que a gente fique sem o mínimo de estrutura para poder continuar sendo bem assistidos”, ressalta.
Aline Santos acredita que a segregação socioespacial que há na cidade tem influência nas condições de moradia e diz que consegue observar essa realidade em seu Bairro, pois as mudanças para uma melhor qualidade de vida efetuadas no Loteamento foram fruto de enfrentamento da Associação de Moradores. “Minha localidade vem sofrendo impactos dessa segregação, sendo desassistida em muitos pontos, até mesmo porque quem deveria dar estrutura, como o loteador e a Prefeitura, não consegue entrar em um consenso do que foi colocado no contrato. E isso se reflete na minha comunidade, deixando a gente esquecido. As mudanças que tivemos aqui foram resultado de uma luta da comunidade e, sinceramente, não foram grandes mudanças. Foi conseguir postes, conseguir que a Coelba desse uma olhada nas ruas que estavam sem energia, conseguir junto com outro Loteamento um asfalto que chegasse próximo ao nosso Loteamento para dar um pouquinho de mobilidade à comunidade com mais segurança. Foi resultado de uma luta da Associação junto aos órgãos públicos e privados para dar mais assistência ao Loteamento”, enfatiza, confirmando o entendimento que a segregação socioespacial em Vitória da Conquista interfere diretamente no desenvolvimento social dessas áreas menos assistidas pelo Estado.
Nesse sentido, o arquiteto e professor Gerardo Angel Bressan Smith afirma que o Estado é o responsável pela segregação e que ele é capaz de continuar perpetuando essa situação. “A segregação espacial e a segmentação urbana são resultados de um processo de natureza política. Um dos fatores para isso acontecer é a ausência do Estado, quando você tem ausência de Estado, você tem regras que podem ser mudadas, ajustadas e negociadas em detrimento de interesses econômicos ou políticos. Se você não tem Estado suficiente para fazer uma boa relação entre o capital e o interesse da sociedade, dificilmente você vai ter Governo forte e inteligente o suficiente para administrar a cidade de modo que ela se reproduza, se desenvolva com foco no interesse da sociedade”. O arquiteto termina dizendo que “a cidade deveria ser gerida a partir de interesses da sociedade que estão expressos em pactos e esses pactos nada mais são do que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, que é uma Lei que tem uma base técnica muito forte, que rege o funcionamento da máquina pública em relação aos aspectos urbanos, não somente aos aspectos econômicos e sociais, mas também em relação a ocupação da cidade, como ocupar a cidade”.
Diante dos fatos expostos, é possível afirmar que Vitória da Conquista é claramente uma cidade segregada socioespacialmente, mostrando o reflexo de ações públicas que visavam o privilégio de uma zona ao invés da outra. As escolhas feitas no passado trazem até hoje consequências que impactam na qualidade de vida da população. Quem realmente dividiu a cidade não foi a BR-116, mas sim o poder aquisitivo.
Esta Reportagem Especial partiu da indicação de pauta de uma de nossas leitoras e é o primeiro em caráter multimídia (presente nas versões impressa, digital em nossas redes sociais) publicado pelo jornal. Participe também nos enviando pautas através do e-mail jornalismo@jornaldosudoeste.com.