No Brasil, 15 de outubro é Dia do Professor. A data relembra um decreto imperial de 1827, documento que criou o ensino público no país.
“O 15 de outubro faz alusão à criação das classes de primeiras letras no Brasil”, afirma a historiadora Katia Abud, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Mas as comemorações só tiveram início no século 20.
Ficava na rua Augusta, 1520, em São Paulo, o Ginásio Caetano de Campos – apelidado de Caetaninho, já que desde 1894 existia a Escola Caetano de Campos, na época ainda no endereço da Praça da República. Ali, um grupo de professores teve a ideia de interromper o ano letivo com um dia de folga. E uma pequena comemoração, em que houvesse o reconhecimento pelo trabalho realizado.
Sugeriram o 15 de outubro, oportunamente equidistante dos períodos de férias escolares e significativamente importante para a educação no Brasil, por causa do decreto imperial de 1827.
Aos poucos, a ideia pegou. Outras escolas começaram a fazer o mesmo. Até que, em 14 de outubro de 1963, o então presidente João Goulart assinou o decreto nº 52.682 e criou o feriado escolar do Dia do Professor no Brasil.
Educação imperial
Mas, afinal, o que era essa tal lei de 1827?
“A lei foi uma tentativa de organizar a educação no Brasil”, resume o historiador Diego Amaro de Almeida, pesquisador do Centro Salesiano de Pesquisas Regionais. “O imperador acaba propondo um projeto de educação que tinha em sua base a promoção do próprio Brasil. Entretanto, devido ao momento e às condições materiais do país, o cumprimento integral da lei foi algo complicado de ser resolvido.”
Em 17 artigos, o imperador Dom Pedro I (1798-1834) mandou “criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império”.
“Dom Pedro, por graça de Deus, e unânime aclamação dos povos, imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil”, conforme relata o documento, decreto que “em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias”.
“Mais do que uma lei relacionada à educação ou ao ensino, foi uma lei que definiu a instrução pública no Brasil”, comenta o pesquisador Vicente Martins, professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú.
A lei apresentava alguns pontos bastante curiosos. O artigo terceiro, por exemplo, estipulava que os professores deveriam ter salários anuais de 200 mil-réis a 500 mil-réis.
“Com atenção às circunstâncias da população e carestia dos lugares”, pontua o decreto.
“Eu realizei alguns cálculos, com a ajuda de um economista, para tentar ajustar este valor aos tempos atuais. E concluí que este intervalo de salários equivale, hoje, a um ordenado mensal de 1.400 reais a 3.500 mil reais”, conta Martins. “Isto significa que, quase dois séculos depois, considerando o salário base da profissão, pouco avançamos nesse aspecto.”
A variação da faixa salarial era justificada pelas condições econômicas de onde a escola estivesse situada. Conforme explica o escritor e historiador Paulo Rezzutti, biógrafo de figuras do período imperial do Brasil, quanto mais pobre fosse a localidade, mais próximo dos 200 mil-réis seria o ordenado anual; quanto mais rica, mais próximo dos 500 mil-réis.
“Mas tem uma outra questão que é interessante”, aponta Rezzutti. “Pela Constituição Imperial, que instituiu o voto censitário, o professor podia votar. A Constituição de 1824 permitia a só quem tivesse renda líquida de 200 mil-réis por ano participar de um dos estágios das eleições brasileiras, que eram feitas de maneira indireta.”
De acordo com o decreto, os professores “ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, a prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica apostólica romana” – na época, o Estado ainda não era laico, vale ressaltar.
O mesmo artigo também faz uma recomendação: “preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil”.
Aqueles que quisessem se tornar professores precisavam passar por uma espécie de concurso público.
“Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados”, dizia o texto, que ressalta que só seriam admitidos para a carreira “os cidadãos brasileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota na regularidade de sua conduta”.
“Anteriormente, muitos professores eram indicados ou promovidos por mero saber. Recebiam a função de professor da mesma maneira que um nobre recebia um título”, afirma o historiador Almeida. “Pela nova lei, ele precisava ser avaliado para ‘provar’ competência.”
O artigo décimo previa a possibilidade de uma gratificação anual a todos os professores com mais de 12 anos ininterruptos de magistério, desde que estes tivessem se “distinguido por sua prudência, desvelos, grande número e aproveitamento de discípulos”.
Mulheres
A lei imperial previa a criação de “escolas de meninas”. Mas apenas nas “cidades e vilas mais populosas, em que (…) julgarem necessário esse estabelecimento”.
“O ensino de meninas ainda era uma novidade”, aponta Almeida. “Muitos pais preferiam preceptoras quando se tratavam das meninas.” Ele cita, por exemplo o caso do Visconde de Guaratinguetá que, em 1865, contratou uma francesa para ensinar sua filha em casa. “E, mesmo assim, a contragosto porque, para ele, ‘instrução de meninas é o casamento'”, cita o pesquisador.
Rezzutti lembra que, apesar de previstas em lei, acabaram sendo raríssimas as escolas para meninas. “Até porque, segundo o pensamento da época, meninas não raciocinavam tão bem quanto os meninos”, explica. “Por isso, aliás, as operações matemáticas para elas não eram matéria obrigatória.”
Dois artigos, o décimo-segundo e o décimo-terceiro, tratavam especificamente da mulher professora. Curiosamente, elas nunca são chamadas de professoras – mas, sim, de “mestras”, termo que aparece apenas uma vez no masculino, em uma frase que se contrapõe às mestras.
Matemática: conhecimento restrito aos homens
O artigo décimo-segundo diz que cabia a elas o ensino quaisquer disciplinas estipuladas no artigo sexto, “com exclusão das noções de geometria e limitando a instrução da aritmética só as suas quatro operações”. “Havia uma mentalidade, corroborada pelo próprio imperador, de que a matemática era um conhecimento restrito aos homens”, conta Martins.
O texto também previa que elas ensinassem “as prendas que servem à economia doméstica”. E fazia uma ressalva moral: as professoras precisavam, além de serem brasileiras, terem “reconhecida honestidade”.
Claro que essa terminologia era um eufemismo. E queria ressaltar que as professoras não podiam ter vida promíscua – conforme os parâmetros de então. “Honestidade, no caso, era o comportamento moral”, explica Almeida. “Durante muito tempo as mulheres, para serem admitidas na carreira, precisaram se sujeitar a muitas regras de conduta. Havia o entendimento que a profissão de professora era muito próxima da maternidade.”
Se alguns desses pontos ferem qualquer princípio de direitos iguais independentemente de gênero, o item seguinte é um alento. Em pleno ano de 1827, a lei imperial cravava que “as mulheres vencerão os mesmos ordenados e gratificações concedidas aos mestres”.
“Essa postura é interessantíssima”, comenta Almeida. “Igualdade de condições com os homens.”
Didática
O artigo quarto definia que o método adotado era o “ensino mútuo”, também chamado de Lancaster. Criado pelo pedagogo e quaker inglês Joseph Lancaster (1778-1838), destacava-se por otimizar a transmissão do conhecimento, ao conseguir passar as aulas a um grande número de alunos, com poucos recursos, em pouco tempo, e com relativa qualidade.
Em texto publicado em 15 de outubro de 1927 na ‘Revista do Ensino’, edição comemorativa ao primeiro centenário da legislação, o professor Leopoldo Pereira descreve como era a “escola antiga”, ou seja, este ensino do século 19.
“Antigamente, o mestre escola, de par com o vigário da freguesia, eram as mais respeitáveis personagens da aldeia. E como era então mais penoso o trabalho de ensinar e aprender! Não havia livros; o mestre tinha de fazer cartas para todos os discípulos. Depois do a-b-c, a carta de nomes, e depois a carta de fora. O mestre e os próprios menos obtinham dos negociantes cartas comerciais para leitura na escola; os próprios pais as forneciam, e quando faltavam, recorria-se aos cartórios, onde o mestre obtinha e às vezes comprava autos antigos, escritos ainda com pena de pato, que eram o terror da meninada. Eu mesmo ainda passei pelo suplício de decifrar as abreviaturas dos escrivães do tempo d’el rei”, pontua.
A didática era baseada em repetição e memorização. E muita disciplina. E isto incluía as reprimendas, conforme dizia o artigo décimo-quinto da lei imperial: “os castigos serão praticados pelo método de Lancaster”.
Sobre isso, professor Pereira também tratou na ‘Revista do Ensino’.
“Não se compreendia então a escola sem o castigo corporal: a férula era para o mestre como o cetro para o rei ou o cajado para o pastor. Até nas aulas de latim e francês, que nossas principais cidades possuíam durante muitos anos, corria bem aceito o axioma que o latim, quando não entrava pelos olhos e ouvidos, devia entrar pelas unhas. Na escola primária a palmatória chamava-se santa luzia. Por que esse nome? Como se sabe, a crença popular venera Santa Luzia como advogada da vista, e nossos pais
entendiam que a férula é que devia dar vista aos cegos”, escreveu ele.
“Este método era o mais moderno da época para trabalhar com grande número de alunos em sala de aula. Ele permitia, por exemplo que alunos mais experientes fossem ‘monitores’, o que dava ao professor a possibilidade de ensinar turmas numerosas”, explica o historiador Almeida.
O historiador pontua que na Constituição de 1824 o método já é citado. Um dos seus defensores foi o influente jornalista e diplomata Hipólito José da Costa (1774-1823). “Vale ressaltar que este método representava, de alguma forma, o que de melhor existia na época”, completa Almeida.
Para o pesquisador Martins, independentemente de qual fosse o método escolhido, a menção a um sistema didático na legislação deve ser ressaltada. “Porque, pela primeira vez, se coloca a necessidade de uma base nacional comum na educação básica”, reconhece.
Depois da lei
Mas, apesar de um passo importante, a legislação não significou que, de uma hora para outra, o ensino se tornou universal no país. “A lei determinava que as províncias criassem as escolas. Algumas criaram, outras empurraram com a barriga”, avalia o historiador Rezzutti.
“Na realidade, pouca coisa mudou”, diz Almeida.
“A lei mostrava uma vontade do novo governo e não a realidade de fato. O que tínhamos ali era a condição legal para a realização de um projeto de educação. Porém não possuíamos recursos financeiros e materiais para que todas as demandas fossem solucionadas e as metas alcançadas. Além disso, o Brasil não contava com o preparo de profissionais para atuar na educação e mesmo com a previsão de formação para os mestres e mestras na lei, faltavam aqueles que poderiam trabalhar nesta formação. Ao mesmo tempo, só tinham condições de acesso à educação a elite, já que neste momento a população deveria se concentrar no trabalho para atender suas necessidades básicas. E até 13 de maio de 1888, os negros não tinham garantias nenhumas de acesso. E, nesse tempo, a maior população no Brasil eram os negros e os pobres. Sendo assim, somente uma pequena parte da população teria acesso”, enumera o historiador.
Almeida lembra que, mesmo depois da nova legislação, muitas famílias ainda seguiam contratando preceptores para educar seus filhos.
“Falava-se em ensino público e gratuito mas, a rigor, ainda era muito excludente”, confirma o pesquisador Martins. “Era um Estado imperial e centralizador. Não havia essa ideia que nós temos hoje de universalização do ensino, esta concepção de Estado social.”
Outros países
Desde 1994, a Organização Mundial das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconhece o 5 de outubro como Dia Mundial dos Professores. Esta data é lembrada em muitos países.
Nos Estados Unidos, o Dia do Professor é comemorado na primeira terça-feira de maio. Boa parte dos países latino-americanos celebram a festividade em 11 de setembro, em memória da morte do pedagogo, jornalista e político Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), ex-presidente da Argentina – data esta estabelecida na Conferência Interamericana sobre Educação realizada no Panamá em 1943.