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Especialistas debatem formas de melhorar qualidade de vida de pacientes com esquizofrenia

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Evento organizado pelo Laboratório de Neuroproteômica do Instituto de Biologia abordou aspectos clínicos e científicos da doença

 

Texto: Luiz Sigimoto Fotos: Antônio Scarpinetti Edição de Imagem: Luis Paulo Silva

 

Alucinações com vozes que xingam e ameaçam, delírios de perseguição por gente ao redor e seres sobrenaturais, desorganização do pensamento e do comportamento que provocam frases desconexas e atitudes inadequadas e mesmo bizarras, isolamento e distanciamento afetivo daqueles que o cercam. Mensurar o sofrimento e discutir formas de melhorar a qualidade de vida de pacientes com esta desordem cerebral foi o que se buscou no evento anual organizado pelo Laboratório de Neuroproteômica do Instituto de Biologia (IB), em 24 de maio, Dia Mundial da Pessoa com Esquizofrenia. Somente no Brasil, estima-se em 2,5 milhões de afetados pela doença, que chegam a perder até 30 anos da vida produtiva, tanto do ponto de vista social como econômico.

“Os familiares têm boa noção de como a desordem se estabelece e progride, mas não exatamente de como lidar com ela. Esse contato mais próximo com o profissional de saúde também faz com que a doença seja desmistificada, sem o estigma do passado, quando doentes psiquiátricos eram trancafiados no hospital”, afirma o professor Daniel Martins-de-Souza, coordenador do Laboratório de Neuroproteômica e organizador do evento intitulado “Possibilidades na vida com esquizofrenia”. As palestras abordaram aspectos clínicos – como psicopatologia da doença e uso de substâncias psicoativas, tratados nesta matéria e também aspectos científicos – a correlação com as proteínas e os efeitos do antipsicótico Clozapina.

Paulo Dalgalarrondo, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) que há mais de 30 anos tem a esquizofrenia como foco de interesse clínico e acadêmico na Enfermaria de Psiquiatria do Hospital de Clínicas (HC), considera esta doença a principal forma de psicose (loucura) devido à sua frequência e importância clínica. Ele iniciou sua palestra contando o histórico das mudanças para o diagnóstico da patologia desde que o alemão Emil Kraepeling, em 1896, definiu várias doenças mentais descritas no século 19 como sendo uma só, que chamou de demência precoce (dementia praecox), por surgir na adolescência e juventude – e que o suíço Eugen Bleuler, alguns anos depois, rebatizou de esquizofrenia: esquizo (divisão) e phrenus (mente).

Foto: Scarpa
O professor Daniel Martins-de-Souza, coordenador do Laboratório de Neuroproteômica: “Os familiares têm boa noção de como a desordem se estabelece e progride, mas não exatamente de como lidar com ela”

Segundo Dalgalarrondo, uma pessoa com esquizofrenia apresenta como características psicopatológicas as alucinações (com alterações principalmente auditivas), os delírios de perseguição, a desorganização de pensamento e de comportamento e o distanciamento afetivo. “A demência precoce traz uma evolução de perdas, de deterioração da personalidade, da vida social e da cognição (atenção, memória, aprendizado). É uma evolução crônica e potencialmente incapacitante. Boa parte dos pacientes evolui com dificuldades sociais e no trabalho; não consegue casar, ter uma vida afetivo-familiar ou mesmo uma atividade laboral; os doentes mais graves deixam de cuidar da higiene e da vestimenta.”

O docente da FCM explica que cerca de um terço dos pacientes tem uma evolução relativamente benigna, conseguindo algum tipo de trabalho e de relações sociais, sem muitos surtos; em outro terço a evolução é moderada, já com prejuízos; e no último terço a evolução é grave, com muitos sintomas, internações e inatividade. “A esquizofrenia surge geralmente na adolescência e juventude, entre 17 e 30 anos de idade, sendo bem mais rara na criança de 8 ou no adulto acima dos 55 anos; 66% dos casos ocorrem antes dos 30 e, em 46% dos homens e em 26% das mulheres, antes dos 20 anos. A prevalência fica entre 0,8% e 1% da população, com uma distribuição por sexo equivalente.”

A visão clínica da esquizofrenia deve ser diferente para o paciente em surto agudo e o paciente fora do surto, conforme Paulo Dalgalarrondo. “Em surto agudo, o paciente apresenta agitação psicomotora e pode ser hostil e desconfiado com as pessoas, havendo o risco de agredi-las, por conta de alucinações auditivas que o ameaçam ou humilham, ou de delírios de perseguição. As alucinações e delírios podem ser intensos, produzindo ideias de perseguição, eróticas, religiosas. Tivemos um paciente na enfermaria que não conseguia se livrar das vozes e, no desespero, destruiu o ouvido médio com um lápis; outros põem algodão nos ouvidos. Esses casos graves precisam de atendimento bem feito para diminuir o sofrimento do paciente, bem como da família.”

O psiquiatra da Unicamp esclarece que ao sair do surto agudo, mediante tratamento ou mesmo por redução espontânea, o doente entra no estado considerado crônico, mantendo-se as alucinações e delírios, ainda que menos intensos, assim como a alteração de comportamento, retraimento social, indiferença afetiva e apatia, sem energia sequer para ajudar em tarefas domésticas. “Kraepeling achava que a alteração da vontade era um dos pontos mais centrais da esquizofrenia. A doença também compromete as atividades cognitivas. Testes em neuropsicologia com esses pacientes indicaram perda de até dez pontos no QI.”

Substâncias psicoativas

Renata Cruz Soares de Azevedo, chefe do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM, foi convidada a falar sobre a relação entre a esquizofrenia e o uso de substâncias psicoativas, sejam as ilícitas, como maconha e cocaína, ou lícitas, no caso de álcool e tabaco. “É um tema importante e recorrente porque há uma sobreposição de sintomas que por vezes torna indistinguível se aquela situação, naquele momento, é um quadro devido ao uso de substâncias psicoativas pelo paciente, ou se é o primeiro surto de um quadro psicótico que pode evoluir para a esquizofrenia. Temos dois problemas: a taxa de uso dessas substâncias e a temporalidade, pois quanto mais precoce o uso, mais potencialmente danoso ao neurodesenvolvimento, com a possibilidade de ocorrência de transtornos mentais de um quadro esquizofrênico.”

Para contextualizar o problema, a psiquiatra da Unicamp apresenta dados epidemiológicos de dois anos atrás, dando conta de que 250 milhões de pessoas usam drogas ilícitas no mundo, número que pode ser multiplicado por oito se incluídos álcool e tabaco. “Cerca de 10% têm problemas relacionados ao uso, como dependência e transtornos mentais associados. Historicamente, usar drogas era um comportamento muito mais masculino, com prevalência, nos anos 1970, de 30 homens para cada mulher; mas atualmente é de três para uma. Os dados sugerem que a esquizofrenia é três vezes mais frequente em indivíduos dependentes de álcool e quase seis vezes em dependentes de drogas, na comparação com a população geral.”

Foto: Scarpa
O psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, professor da FCM: “A demência precoce traz uma evolução de perdas, de deterioração da personalidade, da vida social e da cognição”

Renata Azevedo observa que o desenvolvimento de problemas com drogas é complexo por envolver uma série de variáveis sobre o usuário (biológicas, genéticas, de personalidade, do ambiente mais ou menos protetivo) e que as substâncias psicoativas são bastante diferentes quanto à sua ação e o potencial de dependência. “As drogas produzirão alterações cerebrais também variáveis, a depender do tipo e do padrão de uso, bem como de quem usa – e a idade de iniciação atua como modulador de maior ou menor chance para que este uso se torne um grande problema. A sua associação com transtornos mentais graves, particularmente a esquizofrenia, acrescenta um estigma a mais e dificulta a busca de tratamento, até porque as ocorrências ficam na conta da droga.”

Uma questão colocada pela professora da FCM é sobre o que vem primeiro, o ovo ou a galinha. “A primeira situação possível é do surgimento de um sofrimento psíquico, que leva o indivíduo a recorrer a substâncias para aliviar o desconforto. Esta hipótese apresenta fragilidades, por não haver uma relação clara entre o sintoma apresentado e a droga buscada. Faria sentido se alguém com quadro depressivo apelasse para substâncias estimulantes e, aquele com ansiedade, para o álcool, mas não é necessariamente o que acontece – e não necessariamente, sintomas mais graves se associam à gravidade do vício. A possibilidade inversa é de o uso de drogas produzir ou antecipar um quadro psicótico, ou ainda de mudar o curso de um quadro que ocorreria de forma mais benigna.”

Sobre a relação entre esquizofrenia e maconha, Renata Azevedo mostra dados de estudos importantes por serem prospectivos e acompanharem os usuários por longos períodos de tempo. “O primeiro deles tem um seguimento de 15 anos e trouxe dados de um aumento de 2,5 vezes de chance de esquizofrenia para um usuário de maconha, subindo para 6 vezes no consumo considerado pesado (50 vezes em dois meses) – este estudo foi prosseguido por mais 12 anos e uma série de ‘confundidores’ reajustados, reduzindo-se o risco de 6 para 3 vezes. Pesquisa mais recente reforça esta associação, principalmente no uso antes dos 15 anos de idade, que aumenta em 4 vezes o risco de esquizofrenia na idade adulta.”

Quanto à cocaína, a psiquiatra da Unicamp diz que há uma percepção em pacientes esquizofrênicos de alívio de sintomas negativos como apatia, visto que esta droga é um estimulante potente, mas de piora dos sintomas positivos como os paranoicos; e, no pós-uso da substância, a sensação de apatia pode se agravar. “Outro vício que merece atenção particular em pacientes com esquizofrenia é o tabagismo. Além do suicídio, muitas mortes de pacientes vêm de doenças relacionadas ao tabaco – e eles morrem precocemente, em torno de 20 anos mais cedo que a população geral. Precisamos trabalhar a motivação daqueles que têm sentimentos negativos, já que muitos querem e conseguem parar de fumar.”

Renata Azevedo mostra, por fim, os resultados da dissertação de mestrado da professora Marjourie Biscaro, sua orientada, que durante um ano avaliou pacientes internados na Enfermaria de Psiquiatria do HC da Unicamp, 42% deles esquizofrênicos. “Todos estavam internados por transtornos mentais graves – não por causa de drogas – e 69% já tinham feito uso de alguma substância psicoativa, como a maconha (61,7%). A taxa de uso de álcool (29%) era até inferior à da população geral, mas a de todas as outras substâncias, muito superior. Para a maior parte desses pacientes, a dependência química vinha de quatro anos, enquanto o transtorno mental, havia um ano e meio. Não afirmo que existe uma causalidade, mas em 80% das vezes o uso de drogas antecedia o transtorno mental.”

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