É o que mostra estudo desenvolvido em parceria entre a Unicamp e a PUC-RS e recém-publicado no periódico “Nature Communication”
Texto: Carlo Gallo Netto Fotos: Antonio Perri Edição de Imagem: Luis Paulo Silva
Pesquisadores da Unicamp, em parceria com a PUC-RS, publicaram em julho, no periódico Nature Communication, trabalho em que avaliam em camundongos o efeito dos ácidos graxos de cadeia curta sobre o desenvolvimento de infecção viral pelos Vírus Sincicial Respiratório (RSV). Dados pré-clínicos demonstravam que a suplementação desses animais com dietas enriquecidas com fibra solúveis ou com acetato de sódio adicionado à água de beber os protegiam contra a infecção por RSV, reduzindo significativamente a perda de peso, a carga viral e o infiltrado celular nos pulmões durante a doença.
O trabalho desenvolvido por pesquisadores das duas universidades começou, em 2013, por meio da colaboração do grupo coordenado pelo professor Marco Aurélio Ramirez Vinolo – do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp – com o grupo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do RS, liderado pela professora Ana Paula Duarte de Souza, especializado em vírus, a que se juntaram os pesquisadores da Unicamp Maria Teresa Pedrosa Silva Clerici, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), que colaborou com o desenvolvimento de dietas destinadas aos animais; José Luiz Proença-Módena, do IB, especialista em virologia; e Hosana Gomes Rodrigues, da Faculdade de Ciências Aplicadas, sediada em Limeira (FAC), que além de especialista em inflamação, auxiliou na quantificação de ácidos graxos de cadeia curta.
Mencione-se ainda a participação de alunos de pós-graduação da Unicamp incluindo o doutorando José Luís Fachi e a mestranda Laís Passarielo Pral, ambos do IB da Unicamp, e da doutoranda Krist Helen Antunes da PUCRS, coorientada por Marco Aurélio.
O docente, coordenador do projeto, esclarece que o trabalho foi proposto porque à época existiam dados epidemiológicos de que a ingestão de alimentos com alto conteúdo de fibras poderia gerar proteção em crianças em relação à infecções respiratórias. Paralelamente foi publicado um trabalho mostrando, em modelos animais, que o consumo de fibras poderia protegê-los em relação ao desenvolvimento de asma, também uma doença inflamatória respiratória. A propósito, diz ele: “Chegamos à conclusão que valeria a pena verificar se a infecção pelo Vírus Sincicial Respiratório (RSV) poderia de alguma forma ser prevenida ou atenuada. A infecção por esse vírus é muito comum em crianças recém-nascidas e até os três anos, em que a doença se manifesta em torno de 70% e em parte delas evolui para um quadro grave da inflamação respiratória chamada de bronquiolite, que inclusive pode causar a morte”. Essa doença, caracterizada pela vasta inflamação e edema das vias áreas, causa aumento na produção de muco e necrose das células epiteliais pulmonares especificamente nos brônquios. Em 2017, registrou-se em São Paulo aumento nos casos graves de crianças infectadas pelo RSV encaminhadas à UTI, o que despertou a atenção da comunidade médica e científica para a necessidade do desenvolvimento de terapias para o tratamento e contenção dessa doença. Não existe tratamento para essa infecção a não ser a utilização de medicações para amenizar sintomas como febre, dor no corpo, dificuldades respiratórias, a exemplo do que se faz com a gripe.
O estudo
No estudo os pesquisadores basicamente se valeram de animais de laboratório para testar a hipótese de que as fibras poderiam ter efeito benéfico frente ao vírus. Camundongos foram submetidos a uma dieta previamente formulada e rica em fibras. Para efeito comparativo, outro grupo recebeu dieta com baixo teor de fibras. O objetivo inicial era verificar se a pesquisa se justificava e deveria continuar na direção da hipótese aventada.
Depois de três semanas em dieta, todos os animais foram infectados para que pudesse ser verificado como responderiam à infecção. Observou-se que aqueles que ingeriram dieta rica em fibra tinham menos vírus no pulmão depois de cinco dias. Mais que isso, esses animais não apresentaram um quadro de inflamação pulmonar, diferentemente dos que tinham ingerido baixo conteúdo de fibras, nos quais se manifestara uma grande inflamação nos pulmões. Esse primeiro resultado mostrou que o consumo de fibras protege o animal contra a infecção por RSV.
Diante disso, os pesquisadores se propuseram a desvendar o mecanismo que leva a fibra a promover a proteção em relação a esse tipo de infecção. Já se sabia que essas fibras levavam à formação de compostos gerados naturalmente pela microbiota intestinal, os chamados ácidos graxos de cadeia curta, comum a todos os seres humanos, mas cujas concentrações podem variar e dependem de vários fatores, entre eles tipo de alimentação e condições metabólicas dos diferentes organismos. Essa variação de concentração pode tornar o indivíduo mais ou menos suscetível a vários tipos de doenças, embora não se soubesse ainda como se dava a ação desses compostos sobre a infecção provocada pelo vírus em questão.
Foram então realizados experimentos para comprovar que a proteção decorria da ação dos compostos gerados naturalmente pela microbiota, os ácidos graxos de cadeia curta. Para tanto, eliminou-se a microbiota dos animais com a aplicação de antibióticos. Ocorreu efetivamente a cessação do efeito protetor, mas que retornava quando os animais recebiam por via oral os ácidos graxos de cadeia curta. Comprovava-se, assim, a hipótese aventada de que esses ácidos graxos produzidos pela microbiota do intestino são absorvidos pelo órgão e agem nas células pulmonares, reduzindo a quantidade de vírus.
Para Marco Aurélio, o interessante é que outros experimentos realizados pela equipe, como a administração dos ácidos graxos de cadeia curta aos animais, tanto através da água bebida contendo acetato de sódio ou da inalação da mesma solução, produziram ao mesmo efeito protetor. Essa constatação levou os pesquisadores a pensar que esse tratamento talvez funcionasse também em humanos.
O grupo de pesquisa está dando andamento ainda a uma análise inicial em humanos, que consiste em verificar se há uma correlação entre as quantidades produzidas de ácidos graxos de cadeia curta no organismo e a intensidade da infecção por RSV. Essa pesquisa está sendo realizada com crianças já afetadas pela infecção e atendidas em hospital de Porto Alegre. Nelas são medidas as concentrações de ácidos graxos endógenos. Resultados ainda preliminares indicam que quanto maior a quantidade deles nas fezes menor a chance delas desenvolverem infecção grave e menor o tempo de internação.
Em síntese
No trabalho com animais constatou-se em suma que a administração das fibras, as quais levam a geração dos ácidos graxos de cadeia curta no intestino, ou mesmo diretamente desses compostos, contribui para proteção durante a infecção pelo vírus RSV, conforme ilustra a figura.
Figura enviada pelo entrevistado
No trabalho com animais verificou-se efeito benéfico da administração de ácidos graxos de cadeia curta quando os mesmos foram administrados antes da infecção (estratégia de prevenção), assim como em animais recém-infectados, com redução de vírus no pulmão e diminuição do grau de infecção desse órgão. Esses últimos achados indicam que essa abordagem pode ser empregada como forma de tratamento.
A partir dessas constatações a proposta é realizar o tratamento em humanos utilizando um grupo de crianças que ingerissem preferencialmente fibras através da adição na alimentação, para verificar se os mesmo efeitos se verificam tanto nos casos mais graves como nas manifestações moderadas.
Patente
Marco Aurélio lembra que os resultados levaram o grupo a requerer patente do uso dos ácidos graxos de cadeia curta e moléculas que atuam pelo mesmo mecanismo de ação no tratamento de doenças virais e que a ideia é conseguir parcerias para realizar os testes em humanos. Ele explica: “Mostramos que o aumento de ácidos graxos de cadeia curta nos animais determina maior proteção em relação à infecção estudada e detectamos o mecanismo envolvido. Identificamos uma proteína celular que estabelece a conexão entre os ácidos graxos de cadeia curta e sua ação protetora, o receptor GPR43, presente nas células pulmonares. O que patenteamos foi o uso de ácidos graxos de cadeia curta ou moléculas similares que ativam esse receptor que por sua vez age no combate a doenças infecciosas virais”.
Em resumo, diz o pesquisador, a utilização de dieta com fibras protege os animais contra a infecção pelo vírus RSV. Essa proteção é conseguida com a geração de compostos pela microbiota intestinal, os chamados ácidos graxos de cadeia curta, que atuam no pulmão ativando os receptores GPR43 protetores.