Ilustremos uma reflexão com três historinhas, a primeira muito conhecida.
– Condenado à morte por corromper a juventude, Sócrates, o filósofo, recusou a oferta para fugir de Atenas sob o argumento de que seu compromisso com a polis não lhe permitia transgredir as regras. Os gregos cultivavam o respeito à lei.
– Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Mais tarde, executou os próprios filhos por conspirarem contra o novo regime. Pregava o poeta Horácio: “Doce e digno é morrer pela Pátria”.
– Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no Livro III sobre os discursos de Tito Lívio, deu comida aos pobres por ocasião de uma epidemia de fome e, por esse ato, foi executado por seus concidadãos. O argumento: pretendia tornar-se um tirano. Os romanos prezavam mais a liberdade do que o bem-estar social.
Desses relatos, emerge a pergunta: qual dos três personagens se sairia melhor caso o enredo ocorresse dentro do cenário da política contemporânea? Sem dúvida, o terceiro. Com uma diferença: o matreiro político não seria executado por alimentar a plebe, mas glorificado, mesmo escondendo por trás da distribuição de alimentos seu projeto de poder.
Essa é a hipótese mais provável, pelo menos em nossas plagas de tradição patrimonialista.
A moldura oferece uma leitura de dois mundos. O primeiro é regrado por princípios e valores, dentre os quais se destacam o compromisso com o bem comum, a obediência às leis, a defesa da moral e da ética. Esse escopo combina com a paradisíaca ilha da Utopia, que o inglês Thomas Morus descreveu: “uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm propriedade individual e absoluta”.
Esse Estado perfeito espelha a cidade divina em contraposição à cidade terrestre, esta afinada ao universo de Maquiavel, onde “os fins justificam os meios”. O florentino prega a noção de que o povo é dotado de razão, sendo capaz de decidir o seu destino. Sonha com a liberdade e, para conquistá-la, o príncipe deve usar os meios necessários. A lógica maquiavélica é: ideologias e valores morais devem ceder lugar aos instrumentos que podem garantir a hegemonia. Ou, na expressão de Weber, a ética da ação deve prevalecer sobre a ética da consciência.
O desenho ajuda a entender a quadra político-institucional que vivemos. Protagonistas da política, governantes, representantes e até juízes, lutam para fazer valer suas demandas. O resultado aparece na multiplicação de mazelas e velhos padrões da política.
Afinal, o que se faz necessário para que o Brasil, em 2020, comece a fortalecer seu conceito de Nação? Tentemos responder. O primeiro aspecto é: democratizar nossa democracia. Ou seja, dar vazão ao esforço para expandir a participação do povo no processo decisório, visando a aumentar a inclusão social, melhorar as condições do trabalho, proteger o meio ambiente, os direitos humanos e qualificar os serviços públicos, a partir das áreas da educação, saúde e segurança.
Urge incrementar nossa democracia participativa, convocando a sociedade para formação de um projeto nacional, evitando multiplicação de programas com foco em conveniências eleitoreiras. O Brasil clama por planos essenciais, integradores de necessidades sociais, culturais, geográficas e econômicas. No lugar de tijolos, paredes inteiriças.
E mais: a relação entre os Poderes há de ocorrer sob a égide da harmonia, respeito e autonomia, evitando tensões. Significa consolidar as funções do Parlamento, do Judiciário e do Executivo, dentro da norma constitucional, fazendo-os respeitar os espaços de cada um.
Impõe-se valorizar a meritocracia e atenuar a carga das indicações assentadas na vida partidária. Significa selecionar perfis adequados para as estruturas governativas. Aristóteles dá uma pista: “Quando diversos tocadores de flauta possuem mérito igual, não é aos mais nobres que as melhores flautas devem ser dadas, pois eles não as farão soar melhor; ao mais hábil é que deve ser dado o melhor instrumento”. Isso é mérito. É claro que demandas partidárias devem ser contempladas, mas com critério, respeitando-se o principio: partidos que ganham devem participar da administração.
Por último, a lembrança de que uma grande democracia repousa sobre uma base de direitos e deveres, de ordem e harmonia, de ética e moral.