Nunca, nos tempos modernos, a tentação de pôr o dinheiro à frente
de qualquer resultado de miséria social pode ser tão trágica como agora.
A pandemia conhecida como Peste Negra, que surgiu na segunda metade do século XIV, causada pelo bacilo Yersinia pestis, e que provocava enormes manchas enegrecidas na pele, inchaços nas regiões ganglionares do sistema linfático, como a virilha e as axilas, e comprometimentos respiratórios, foi um desses surtos pandêmicos de forte impacto não só demográfico – pois dizimou um terço da população europeia em menos de 6 anos (1348-1350), alcançando 50% na Inglaterra –, mas também cultural, pois está associada historicamente à Guerra dos Cem Anos, tendo aterrorizado a Europa até muitos anos depois de seu surgimento, com avanço para além dos anos 1700.
A transmissão da doença ocorreu inicialmente por causa de ratos pretos e pulgas. Estas infestavam as cidades europeias às voltas com precaríssimas condições sanitárias, o que deu lugar ao contágio através do contato interpessoal por espirros e tosses. Operava-se então um círculo vicioso nessa relação rato-pulga: a pulga infectada picava o rato urbano que, infectado, se tornava abrigo de outras pulgas que através dele também se infectavam. Quando esse rato morria vitimado pela infecção, as pulgas que ele abrigava buscavam um novo hospedeiro.
Atribui-se a disseminação da Peste Negra aos mongóis que haviam conquistado a China, tendo a transmissão se propagado através das caravanas da chamada Rota da Seda, constituída por rotas do comércio desse tecido entre Oriente e Europa, já que nos seus aprestos se escondiam os ratos negros. Segundo alguns estudiosos, um dos fatores que contribuíram para sua exponenciação teria sido a drástica diminuição, na Europa, de gatos, predadores naturais dos ratos, exterminados sistematicamente durante séculos por uma crença mística de que seriam associados ao Diabo, o que, apesar de isso ser controverso, parece ter origem na distorção do sentido da Bula Vox in Rama, do Papa Gregório IX, de 1.233, que condenava cultos ditos satânicos que se utilizariam de representações com animais, inclusive felinos.
Embora o extermínio dos gatos possa não ser considerado a causação central da expansão epidêmica da Peste Negra, ela põe em evidência como as crendices fazem mais mal do que bem em horas de grave problemas de saúde pública, capazes de originar tumulto social de difícil contenção.
Não é inoportuno lembrar que à medida que foi crescendo o destaque do chamado Método Científico, idealizado por René Descartes, as crendices místicas foram decrescendo em relação inversamente proporcional. Todavia, quando se pensava que elas estavam mortas, ressuscitam no discurso de um Presidente que produz alegorias sem pé nem cabeça, como a de vincular uma suposta imunização do brasileiro ao contato que ele tem no esgoto. Mesmo se sabendo que esse Presidente tem uma frágil formação intelectual, seria pelo menos exigível que ele atuasse com a prudência própria do ocupante do cargo. Muito mais grave, entretanto, é assistir a um deputado federal e médico como Osmar Terra afirmar, como fez horas atrás, que 99,6% das pessoas infectadas pelo Covid-19 nada sentirão.
Essas declarações que procuram desmerecer as medidas que o mundo inteiro está tomando para evitar o aumento da infecção pelo novo Coronavírus jogaram o povo brasileiro, nos últimos dias, numa sensação de que o mal não é tão grande. Claro que o motor causal disso é de natureza econômica, afinal tudo aquilo que afeta o bolso termina sendo elevado comumente a preocupação central de nossas vidas, negligenciando-se que é nessas horas que o Estado deve intervir em favor de uma população historicamente escorchada com encargos financeiros.
Ansiosos, então, para restaurarem a normalidade da vida social e econômica, alguns governantes municipais estão começando a afrouxar a quarentena e com isso podem se tornar responsáveis por notas trágicas nos resultados da pandemia. Por óbvio que nenhuma atuação como essa vem desacompanhada de contramedidas escondidas nas dobras do discurso. Uma delas é a subnotificação, prática voluntária ou não que consiste em notificar menos do que seria devido. A China está sendo neste momento acusada de ocultar o aumento de testes positivos. Os Estados Unidos, que a ultrapassaram em número de casos, pressionados pela opinião pública sobre essa nova quantificação, atribuem sua própria escalada, segundo as palavras de Donaldo Trump ditas horas atrás, ao mérito de terem aumentado os testes (“it’s a tribute to our testing”).
No Brasil, não se vê movimentação do governo federal alguma para dar visibilidade aos casos. A manobra que talvez seja usada doravante para quem vai abolir a quarentena será camuflá-los com a máscara de que as infecções que derem entradas nos hospitais possam ser anunciadas como patologias com sintomas respiratórios similares, o que não será difícil fazer, já que não estão sendo disponibilizados testes com suficiência nacional para o Covid-19.
Se isso acontecer e o crescimento pandêmico se tornar alarmante, talvez os governantes devam saber que serão responsabilizados criminalmente e por improbidade administrativa, o que não tem nada a ver com o dever indenizatório que o Presidente quer lhes imputar. As leis são tão claras nesse sentido que os serviços de assessoria jurídica nem deveriam ser acionados para esclarecimento.
Em vez de esses gestores seguirem a onda desinformacional do atabalhoado Presidente que macaqueia muito mal tudo que seu desastroso colega americano faz, deveriam promover discussões comunitárias mediadas por epidemiologistas, infectologistas e estatísticos, como alguns poucos lugares estão fazendo, em vez de simplesmente desatarem os nós da contenção e permitirem que as pessoas possam livremente circular em lugares comercialmente públicos, pois foi isso que produziu o quadro alarmante nos Estados Unidos e Reino Unido, levando-os a recuar nas razões meramente economicistas ao anteverem os efeitos nefastos da propagação. Como disse o primeiro ministro britânico Boris Johnson, que revelou há pouco ter sido infectado pelo novo Coronavírus, trata-se da pior ameaça em décadas da Europa.
Nunca, nos tempos modernos, a tentação de pôr o dinheiro à frente de qualquer resultado de miséria social pode ser tão trágica como agora.
ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SITIO ELETRÔNICO DA probus (https://www.probusbrasil.org.br/)