Gregório de Matos Guerra, poeta barroco, era conhecido como o “Boca do Inferno” pelos poemas satíricos que publicava com críticas ferrenhas aos líderes, aos políticos, religiosos e intelectuais da Bahia, repletas de ofensas e palavrões. Peças desse tipo renderam-lhe a fama e imagem de poeta libertino e revoltado. Diante desses fatos era tido como dedo-duro.
Revolucionário, transgrediu padrões morais da época, denunciou a elite baiana pela autoria dos desmandos sociais. Não suportava a mediocridade e a corrupção dos poderosos nem os péssimos costumes dessa gente. Assumiu uma filosofia de vida e um comportamento pessoal próprio, com a temática de sua predileção e objetivos.
Ganhou fama e se popularizou pelas suas criações, voltada para criticar e ridicularizar alguém da sociedade baiana, de forma sutil, com intuito moralizante. No escárnio de seus versos zombou de juristas, magistrados, clérigos, freiras e letreados poderosos.
“Que fora Juiz, se alista/ este burro, este asneirão, / e com tal jurisdição/nada teve de Jurista:/e por mais que ser insista/ Juiz, como significa, / então maior asno fica, / dos que vão, e dos que vêm:/ mas não o sabia ninguém//. Não poupava ninguém, nem a si.
Foi autor de textos divinos e profanos.
Soneto: Ao Dia do Juízo (Ver Mateus 24.30-31)
“O alegre do dia entristecido, /O silêncio da noite perturbado, /O resplendor do Sol todo eclipsado, /E o luzente da lua desmentindo! // Rompa todo o criado em seu gemido, /Que é de ti, mundo? Onde tens parado? /Se tudo neste instante está acabado, /Tanto importa o não ser, como haver sido. // Soa a trombeta da maior altura, /A que vivos e mortos traz aviso, / Da desventura de uns, de outros ventura. // Acaba o mundo, porque já é preciso, /Erga-se o morto, deixe a sepultura, /Porque chegado é o dia do Juízo.
BUSCANDO A CRISTO
A vós correndo vou, braços sagrados, /Nessa cruz sacrossanta descobertos/Que, para receber-me, estais abertos, /E, por não castigar-me, estais cravados//.
A vós, divinos olhos, eclipsados/De tanto sangue e lágrimas cobertos, /Pois, para perdoar-me, estais despertos, /E, por não condenar-me, estais fechados//.
A vós, pregados pés, por não deixar-me, /A vós, sangue vertido, para ungir-me, / A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me, //.
A vós, lado patente, quero unir-me, /A vós, cravos preciosos quero atar-me, / Para ficar unido, atado e firme//.
POR CONSOANTES QUE ME DERAM FORÇADOS
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:/Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;/Com sua língua, ao nobre o vil decepa: /O velhaco maior sempre tem capa//.
Mostra o patife da nobreza o mapa:/Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa:/Quem menos falar pode, mais increpa:/Quem dinheiro tiver, pode ser papa//.
A flor baixa, se inculca por tulipa:/Bengala hoje na mão, ontem garlopa:/Mais isento se mostra o que mais chupa://
Para a tropa do trapo vazo a tripa:/E mais não digo; porque a Musa topa/ Em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa//.
Muitos poetas fofoqueiros atacavam desvios de condutas e promiscuidades com poemas satíricos ao estilo de Gregório de Matos, fazendo-se passar por ele. Um desses poemas critica uma tal de Luzia por causa de seus desejos sexuais: a moça solicitou a um amigo que lhe desse “quatro investidas” – duas de dia e duas à noite e também de Brazia de Calvário, mulata meretriz, que foi fraga fazendo sexo com um frade.
DADOS BIOGRÁFICOS DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
Gregório de Matos Guerra nasceu na então capital do Brasil, Salvador, BA, em 20 de dezembro de 1636, numa época de grande efervescência social, e faleceu no Recife, PE, pelas mais recentes pesquisas, em 1695, embora a data tradicionalmente aceita fosse a de 1696.
Foram seus pais Gregório de Matos, fidalgo da série dos Escudeiros, do Minho, Portugal, e Maria da Guerra. Em 1642 Estudou Humanidades no Colégio dos Jesuítas em Salvador/BA. Seu pai era um homem abastado, empreiteiro de obras e senhor de engenho, que lhe possibilitou recursos financeiros para estudar. Aos 14 anos (1650), foi mandado para Portugal para dar continuidade a vida acadêmica.
Aos 25 anos (1661) tornou-se bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra. Sua tese de doutoramento, toda ela escrita em latim, encontra-se na Biblioteca Nacional. Exerceu em Portugal os cargos de curador de órfãos e de juiz criminal e lá escreveu o poema satírico “Marinícolas”.
Aos 36 anos (1672) foi nomeado representante da Bahia na Metrópole, chegando a exercer a magistratura como Juiz de fora em Alcácer do Sal.
Desgostoso, retornou ao Brasil aos 47 anos de idade (1683), fez votos religiosos, e ocupou o cargo de Vigário-geral (ordens menores) e tesoureiro-mor do arcebispado, nomeado pelo arcebispo Gaspar Barata. O novo arcebispo frei João Madre de Deus o destituiu do cargo, por recusar usar batina nem aceitar a imposição das ordens maiores, foi deposto por não completar as ordens eclesiásticas de forma a estar apto para as funções de que se tinha incumbido.
Apaixonou-se pela viúva Maria de Povos, com quem passou a viver, com prodigalidade, até ficar reduzido à miséria. Com essa situação passou a viver na boemia, aborrecido do mundo e de todos, e a todos satirizando com mordacidade, expondo as mazelas sociais da elite, por que ficou conhecido como “Boca do Inferno”, não poupando padres, freiras e governantes e nem a si mesmo.
O governador D. João de Alencastre, primeiro queria protegê-lo, teve afinal de mandá-lo degredado para Angola, a fim de o afastar da vingança de um sobrinho de seu antecessor, Antônio Luís da Câmara Coutinho, por causa das sátiras que sofrera o tio.
Chegou a partir para o desterro, e advogar em Luanda, mas voltou ao Brasil para prestar algum serviço ao Governador.
Aos 49 anos de idade (1685), pobre e perseguido, foi denunciado pelo promotor eclesiástico da Bahia, ao Tribunal da Santa Inquisição por injúrias a Jesus Cristo e críticas ferinas às autoridades, por ordem de Dom João D’Alencastre, então governador do Estado. Foi degredado para Angola/África, onde viveu cerca de 10 anos advogando.
“Querem-me aqui todos mal, /Mas eu quero mal a todos, / Eles e eu por vários modos/Nós pagamos tal e qual:/ E querendo em mal a quantos/Me têm ódio tão veemente, / O meu ódio é mais valente, /Pois sou só e eles são tantos//[…].
“Que os brasileiros são bestas? E estarão sempre a trabalhar/ Toda a vida por manterem/ Maganos de Portugal//[…]. Tu dizes que é da outra vida, / Essa razão te desmente;/ Pois para morto ainda falas/ Como se vivo estivesse//[…]
Conseguiu permissão para voltar ao Brasil sob as seguintes promessas: Não voltar a Bahia e nem escrever sátiras, passou a residir então em Recife-PE, fazendo-se mais querido do que na Bahia. Faleceu, reconciliado como bom cristão, em 1695, aos 59 anos de idade, em decorrência de doenças contraídas em Angola/ África.
“Graças a Deus que cheguei/ A coroar meus delitos/com décimo preceito, / no qual tenho delinquido/… (Preceito 10). Não temia a palavra, temia a omissão e o silêncio. Não compactuava.
“E se és enigma escondido, /Eu sou segredo inviolável /Pois ouves e não percebes/Quem diz o que não sabes//”.
Ele é considerado como o primeiro poeta do Brasil/Colônia. É-lhe atribuído cerca de 700 textos, porém a crítica literária alega, que nem todos é da sua autoria. Esclareça-se que naquele tempo a imitação de textos de terceiros não era considerado plágio, não havia censura e ou crime como ocorre atualmente.
A sua poesia é expressiva e sua língua afiada sofreu consequências, mas o seu rico acervo atravessou séculos, a sua obra poética compreende: poesia lírica, sacra, satírica e erótica. Avançada para a época, chocou pelo teor de seus versos que resiste ao tempo. Segundo Valentin (2013) as primeiras representações da homossexualidade na literatura brasileira de que se tem conhecimento estão em alguns poemas satíricos de Gregório de Matos.
Como poeta de inesgotável fonte satírica não poupava ao governo, à falsa nobreza da terra e nem mesmo ao clero. Não lhe escaparam os padres corruptos, os reinóis e degredados, os mulatos e emboabas, os “caramurus”, os arrivistas e novos-ricos, toda uma burguesia improvisada e inautêntica, exploradora da colônia. Perigoso e mordaz, apelidaram-no de “O Boca do Inferno”.
Suas poesias corriam em manuscritos, de mão em mão, e o governador da Bahia D. João de Alencastre, que tanto admirava “as valentias desta musa”, coligia os versos de Gregório de Matos e os fazia transcrever em livros especiais. Sobreviveram também cópias feitas por admiradores, como Manuel Pereira Rabelo, um dos mais antigo biógrafo do poeta.
É o patrono da cadeira n. 16, na ABL, por escolha do fundador Araripe Júnior.
Postagem: Antonio Novais Torres
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Brumado, em 26/04/2021.