Especialistas recomendam exame clínico ou inspeção visual isolado. Radiografia traz mais prejuízos que benefícios, pois pode levar a intervenções odontológicas desnecessárias devido a resultados falso-positivos
Por Ivanir Ferreira/ Jornal da USP
Pesquisa da Faculdade de Odontologia (FO) da USP feita com 252 crianças, entre três e seis anos, mostrou que o exame radiológico não se configura como melhor método de diagnóstico de cáries em dentes decíduos (dentes de leite), devido à ocorrência de resultados falso-positivos que induziriam cirurgiões-dentistas a realizar intervenções desnecessárias. Segundo o estudo, o exame clínico ou inspeção visual isolado (VIS) ainda é o mais recomendado para essa idade. Além de diminuir a quantidade de procedimentos odontológicos, posterga o tratamento para ocasiões em que a criança esteja mais madura emocionalmente.
Segunda a pesquisa, a cárie infantil em dentes decíduos atinge 500 milhões de crianças no mundo e a prática clínica utilizando radiografia para diagnóstico das lesões ainda é comumente adotada em consultórios odontológicos.
A cirurgiã-dentista Laura Regina A. Pontes, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo, diz ao Jornal da USP que “o método apresenta mais prejuízos do que benefícios”.
Os dentes decíduos surgem por volta dos seis meses de idade e são gradualmente substituídos pelos permanentes próximo dos seis anos de idade. A pesquisadora é primeira autora do artigo veiculado em março de 2021, no BMC Oral Health, Impacto terapêutico insignificante, falso-positivos, sobrediagnóstico e viés de tempo de espera são os motivos pelos quais as radiografias trazem mais danos do que benefícios no diagnóstico de cárie em crianças pré-escolares.
“Algumas imagens radiolúcidas nas radiografias (imagem mais escura) induzem a algumas intervenções desnecessárias porque muitas delas não evoluem antes que aconteça a troca da dentição na criança. São os chamados sobrediagnósticos: o diagnóstico de uma doença que nunca provocará sintomas, que converte as pessoas em pacientes sem necessidade”, afirma. Laura ressalta ainda a importância de se considerar aspectos da saúde emocional e de bem-estar da criança. “O adiamento de tratamentos permite que elas tenham mais tempo para o desenvolvimento de suas emoções para lidar melhor com tratamentos odontológicos”, diz.
As crianças que participaram da pesquisa chegaram por demanda espontânea trazidas por seus pais ou responsáveis para serem atendidas nos serviços odontológicos ofertados gratuitamente à comunidade pela Faculdade de Odontologia, para desenvolvimento de suas atividades práticas e acadêmicas. Elas foram divididas em dois grupos e acompanhadas em seus tratamentos por dois anos, para que as duas estratégias de diagnósticos fossem avaliadas: diagnóstico feito apenas por exame clínico ou associado a radiografias.
“Algumas imagens radiolúcidas nas radiografias (imagem mais escura) induzem a algumas intervenções desnecessárias porque muitas delas não evoluem antes que aconteça a troca da dentição na criança. São os chamados sobrediagnósticos: o diagnóstico de uma doença que nunca provocará sintomas, que converte as pessoas em pacientes sem necessidade”
O grupo controle teve o tratamento definido a partir da avaliação clínica com exame visual pelo Sistema Internacional de Detecção e Avaliação de Cárie (ICDAS – índice utilizado para avaliar lesões de cárie em todos os estágios) e o outro, a partir do exame clínico, acompanhado de exames radiológicos complementares. O critério exigido para que as crianças participassem da pesquisa foi que já tivessem pelo menos um molar decíduo (dentes de trás que ficam na parte posterior da mandíbula ou da maxila). Esta parte do estudo foi descrita no artigo Impacto da inspeção visual e radiografias para detecção de cárie em crianças por meio de um ensaio clínico randomizado de 2 anos, publicado em junho de 2020 no The Journal of the American Dental Association.
Resultados
Das 252 crianças, 216 permaneceram no tratamento e foram acompanhadas por todo o período proposto pela pesquisa (dois anos). A cada seis meses, elas eram convocadas para retorno aos consultórios para avaliação das restaurações, instruções sobre higiene oral, escovação supervisionada e dieta. Após 12 e 24 meses, os exames clínicos eram refeitos para avaliar as restaurações.
De forma em geral, as crianças que foram submetidas aos exames clínicos e radiográficos para detecção de cárie e determinação de tratamento tiveram 30% a mais de intervenções do que aquelas que foram submetidas apenas ao exame clínico visual.
Foi possível observar também que as crianças do grupo que foram submetidas aos exames radiográficos tiveram mais substituições de restaurações e mais restaurações realizadas desde o início do estudo, em comparação com o grupo que fez o tratamento baseado apenas no exame clínico visual. Quanto aos resultados falso-positivos, o grupo de radiografias também teve um número maior pontuado na pesquisa, em dez vezes mais.
“O adiamento de tratamentos permite que elas tenham mais tempo para o desenvolvimento de suas emoções para lidar melhor com tratamentos odontológicos”
Cárie dentária: oclusal e proximal
Em um segundo momento, após finalizado o acompanhamento, os cirurgiões-dentistas também quiseram saber quais foram as intervenções realizadas nos dois grupos de pacientes tratados pelas estratégias distintas.
Para isso, avaliaram 4.383 superfícies dentais, tanto as oclusais (parte superior do dente), quanto as proximais (ponto de contato entre os dentes, onde se passa fio dental). Destas regiões avaliadas, 45 apresentaram resultados falso-positivos (1,02%). Destes, em três superfícies (6,7%), a decisão para o tratamento operatório foi tomada levando em conta a inspeção visual. Em 17 superfícies (37,8%), a decisão de intervenção foi feita baseada em exame radiográfico.
A dentista lembra que todas as superfícies classificadas como resultados falso-positivos foram restauradas sem que houvesse necessidade. Nesse caso, o falso-positivo foi registrado quando uma superfície dentária tinha sido submetida ao tratamento operatório sem que, de fato, houvesse a cárie e que pôde ser confirmada a existência da lesão somente após a abertura do dente.
Sobrediagnósticos
Para avaliar a ocorrência de sobrediagnósticos, foram consideradas as superfícies com indicação de tratamento operatório pelos dois métodos, que não foram restauradas e também não progrediram durante o tratamento.
Para os exames visuais clínicos, houve apenas quatro superfícies dentais diagnosticadas positivamente que não foram restauradas, sendo que apenas três destas superfícies progrediram nos dois anos subsequentes.
Pelo método radiográfico, foram detectadas 65 superfícies dentais com indicação de tratamento operatório, mas que não foram restauradas. Destas 65 superfícies, 42 (64,6%) superfícies não necessitaram de nenhum tratamento operatório durante o período da pesquisa.
Cárie infantil A pesquisa estima que no mundo, durante a infância, a cárie dentária não tratada em dentes decíduos atinge cerca de 500 milhões de crianças, sendo a doença crônica mais prevalente nessa faixa etária. No Brasil, aos 5 anos de idade, uma criança possui, em média, um índice de 2,43 dentes com cárie, sendo a proporção maior nas regiões Norte e Nordeste, enquanto a de dentes restaurados é maior nas regiões Sudeste e Sul. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que a cárie dentária é um problema de saúde pública na maioria dos países industrializados, nos quais 60% a 90% das crianças e a grande maioria dos adultos são afetados pela doença. Embora seja considerada uma doença infantil, na realidade, ela permanece e até piora na idade adulta. As visitas ao dentista deveriam ocorrer em intervalos que variam de três a 12 meses para crianças e de três a 24 meses para adultos. Em um cenário ideal, as primeiras visitas ao dentista deveriam acontecer antes do surgimento do primeiro dente, entre 6 e 7 meses, para instruções da forma correta de fazer a limpeza e evitar cáries. Mais informações: e-mail laura.pontes@usp.br, com Laura Regina Antunes Pontes |