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A banalização das crises

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A pele já não sente os beliscões. Ganhou camadas impermeáveis de insensibilidade. Não reage aos impactos externos, sejam beliscões ou amputações. Crise sanitária era uma gripezinha. Hoje, uma pandemia que mata cerca de 600 mil pessoas. Crise política? Ah, essa vem de lá dos corredores do início da República. Crise econômica? Todos sabem como é, mas ninguém quer se responsabilizar por ela. Crise energética? O ministro Bento Albuquerque garante; não haverá apagão. O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, refuta: é possível que tenhamos um apagão energético.

E assim, de enrolação a enrolação, o Brasil vai engrossando seu novelo de crises. De tão banais, viram coisas comuns. A verve de Roberto Campos apontava dois traços característicos da psique de países em desenvolvimento: a ambivalência e o escapismo. É ambivalência querer equacionar o descontrole dos gestores da coisa pública sem controlar os controladores. E é escapismo argumentar que os confrontos de guerras urbanas, frequentes nas grandes cidades, ocorrem porque o poder do crime é maior que o poder de um Estado, cuja leniência torna-se cada vez mais patente ante a escalada de violência que se abate sobre a sociedade. O espaçoso terreno público se apresenta todo esburacado.

Cada qual organiza, ao bel prazer, a concepção e a ordem das ações a serem desenvolvidas, solicitando às áreas jurídicas e contábeis que ajustem as contas nos termos da legislação. Dessa forma, orçamentos são engolidos em projetos feitos sob pressão de grupos e em programas superficiais. Se a gestão tem sabor político, é natural que os dirigentes concentrem as decisões, evitando perder força.

O nosso presidencialismo de coalizão ampara-se na costura de amplas alianças. Entenda-se, ainda, que a política deixou de ser missão (para servir a polis, como pregava Aristóteles) e se tornou profissão. Logo, pôr a mão na res pública passou a ser grande negócio. Abre-se, a partir dessa lógica, uma crise de governança e não de governabilidade, como alguns entendem, porquanto o sistema político, a forma de governo e as relações entre os Poderes, mesmo operando em um complexo desenho institucional como o nosso – federalismo, presidencialismo, bicameralismo, representação proporcional, voto majoritário, pluripartidarismo – não chegam a ameaçar a democracia. Qual é a alternativa? Arrumar a gestão. Haverá sempre um jeitinho de contornar as situações.

Querem apostar? Onde irá bater a CPI da Covid? Em quem recairá a culpa pela má previsão da crise energética? Haverá penalidade ao presidente Bolsonaro ou alguns de seus ministros por ausência de boa gestão? Veremos uma fila de autoridades no caminho das prisões? Ou será que ficará evidente a máxima de Anacaris, um dos sete sábios da Grécia? “As leis são como as teias de aranha, os pequenos insetos prendem-se nelas e os grandes rasgam-nas sem custo”. Tem havido algum ganho no campo da moral com tanta denúncia? É possível.

A ladroagem é embalada por um celofane tecnológico de alta sofisticação, diferente dos costumes da Primeira República, quando a eleição do Executivo municipal assumiu relevo prático. Naquele tempo, o lema da prefeitada era: “Aos amigos, pão; aos inimigos, pau”.

A tarefa de impedir que a teia de aranha seja rasgada pelos grandes exige mais transparência de todas as estruturas públicas. Seria útil que as comunidades acompanhassem de perto o fluxo das obras municipais, a partir de sua descrição em painéis afixados em praças públicas. Mas o propagandismo pode acabar se tornando outra praga.

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Jornal Digital Jornal Digital – Edição 745