Foto: Extração do látex numa seringueira
Migrantes na extração de látex em Rondônia
Fachada do Teatro Amazonas, em Manaus
Interior do Teatro Amazonas
Manaus no início do século 20
Theatro da Paz, em Belém
Mercado Ver-o-Peso, em Belém
Um conto de fadas com final trágico. Assim pode ser resumida a história do período áureo do Ciclo da Borracha na Amazônia, entre 1879 e 1912. Do nada, Manaus e Belém – até então cidades pequenas e ilhadas no coração da floresta amazônica — tornaram-se as capitais brasileiras mais desenvolvidas, com eletricidade, sistema de água encanada e esgoto, além de hotéis e teatros luxuosos, construídos sob influência europeia.
Em Manaus, batizada de “Paris dos Trópicos”, ficaram célebres as imagens de integrantes da elite local (proprietários de terras, banqueiros, exportadores e comerciantes) circulando pelas ruas vestidos à moda parisiense, apesar do calor sufocante local.
O sonho da chamada “Belle Époque Amazônica” começou com a descoberta de que uma seringueira (Hevea brasiliensis), até então um produto exclusivo da região, seria a matriz de um produto valioso, a borracha, dando início a um crescimento econômico desproporcional, poucas vezes vistos até hoje na história do capitalismo. O rápido boom ocorreu em meio às transformações nos meios de produção na Europa e Estados Unidos, marcadas pelo desenvolvimento tecnológico da Revolução Industrial.
Batizada de “ouro branco”, a borracha é resultado de um processo de custo irrisório. Da seringueira é extraído um líquido viscoso e branco, chamado látex, o qual passa por uma coagulação espontânea em contato com o ar, formando o polímero conhecido como borracha.
Após passar por processo de vulcanização — um tratamento industrial criado pelo inventor americano Charles Goodyear (1800-1860), que elimina as impurezas da coagulação –, a borracha seria utilizada na fabricação de pneus de automóveis, motocicletas e bicicletas, bem como de correias, mangueiras e solas de sapatos, entre outros produtos.
Parte da concentração de riqueza na Amazônia no período se deve ao fato de que a seiva dos seringais podia ser encontrada em mais de vinte árvores tropicais no planeta, mas a qualidade e produtividade da espécie Hevea brasiliensis da região era única. Isso tornou a indústria mundial dependente do látex extraído da floresta amazônica.
Com o fim do ciclo – com uma breve retomada entre 1941 e 1945 –, as duas capitais voltaram a ser as mesmas cidades distantes e esquecidas de antes da riqueza, sem perspectivas futuras. Para se ter uma ideia, até a exploração do “ouro branco”, a economia regional da Amazônia era restrita ao extrativismo das chamadas “drogas do sertão”: canela, cravo, anil, cacau, raízes, sementes oleaginosas e salsaparrilha. Antes da descoberta do uso estratégico da borracha, as comunidades indígenas usavam a seiva branca dos seringais para fazer vasilhas, bolas e no tratamento de doenças.
Exploração na selva
Logo no início do ciclo, a preocupação era viabilizar a extração da matéria-prima em larga escala, o que demandaria grande utilização de mão-de obra (o que não existia numa região com baixa densidade populacional) e infraestrutura de transporte para o exterior.
De várias partes do Nordeste vieram levas de migrantes atraídos pela riqueza fácil, calculada em 300 mil pessoas ao longo do ciclo. A maioria, porém, acabou vítima de uma arapuca — o migrante transformado em seringueiro era explorado numa situação análoga à escravidão, com uma remuneração que não pagava os preços exorbitantes de comida e acomodação cobrados pelos donos dos seringais, administrados por famílias tradicionais da região. A exploração abjeta de mão de obra no ápice da produção da borracha foi narrada em detalhes pelo escritor Euclides da Cunha, em viagem pela região no início do século 20.
Indiferente ao drama dos migrantes nordestinos, o governo brasileiro estava mais interessado em ampliar o escoamento da extração da borracha, feito por barcos a vapor. A primeira medida, em 1903, foi adquirir oficialmente da Bolívia o controle territorial do atual estado do Acre (já ocupado por invasores brasileiros para extrair o látex) por 2 milhões de libras esterlinas, num acordo que incluiu a entrega de terras do Mato Grosso e a construção de uma ferrovia para escoar a produção.
Outra frente foi viabilizar uma linha férrea em pleno coração da Amazônia. O empreendedor norte-americano Percival Farquhar aceitou o desafio de financiar a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), uma ferrovia de 366 quilômetros de extensão ligando Porto Velho a Guajará-Mirim – duas cidades criadas no atual estado de Rondônia para servir à linha férrea.
O trajeto foi desenhado para driblar o trecho encachoeirado do Rio Madeira e facilitar o escoamento da borracha boliviana e brasileira, além de outras mercadorias, atravessando Amazonas e Rondônia, passando pela fronteira com Mato Grosso, até um ponto onde pudesse ser embarcada para exportação a partir de Porto Velho — de onde as mercadorias seguiam por via fluvial pelo mesmo Rio Madeira e pelo Rio Amazonas até o Oceano Atlântico.
As obras se estenderam por cinco anos, entre 1907 e 1912, e representaram mais que um desafio logístico. Para amenizar a incidência de doenças tropicais que atingiram parte dos mais de 20 mil trabalhadores de diferentes nacionalidades empregados na obra, como a malária, Farquhar contratou o sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz, que visitou o canteiro de obras e recomendou medidas preventivas.
Luxo e riqueza
A inauguração da estrada de ferro, em 1912, coincidiu com o início do fim do ciclo áureo da borracha, efeito de um dos maiores atos de biopirataria internacional já conhecidos, ocorrido anos antes, em 1877 – quando mais de 70 mil sementes de seringueiras do Pará foram contrabandeadas sem alarde para a Inglaterra pelo botânico inglês Sir Henry Wickham.
As sementes foram encaminhadas ao Royal Botanic Gardens em Londres e, após selecionadas geneticamente, acabaram enviadas para a Malásia, onde foram plantadas em 1910. Dois anos depois, as seringueiras produzidas em larga escala por empresas inglesas e holandesas no país asiático, a um custo inferior às da Amazônia, começaram a gerar renda e, ao mesmo tempo, causar uma queda brusca no preço do látex, inviabilizando comercialmente a exploração da borracha amazônica.
Nessa época, os ganhos por aqui com o produto estavam no auge — a borracha, comercializada em libras esterlinas, respondia por 40% das exportações do Brasil em 1912. Isso havia gerado uma riqueza rápida em toda a região desde o início do ciclo, pouco mais de três décadas antes.
Belém, por exemplo, inaugurou em 1878 o Theatro da Paz, de estilo neoclássico e inspirado do Teatro alla Scala (Itália). O Mercado Municipal Ver-o-Peso (1901) e o Matadouro de Maguary (1912) são outras marcas arquitetônicas da capital paraense do período.
Manaus, por sua vez, a primeira cidade brasileira a ter energia elétrica, vivenciou esse conto de fadas com tudo a que tinha direito. Boa parte das obras modernizantes da capital amazonense foram tocadas pelo governador Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900).
Primeiro governador negro do Brasil, Ribeiro implantou vários serviços públicos –iluminação pública, água encanada, telefone e telégrafo, além de uma linha de bonde –, e caprichou no planejamento urbano, usando paralelepípedos de granito nas ruas e pedras lioz nas calçadas, além de construir praças com fontes e jardins bem-cuidados que lembravam Paris.
O marco de sua gestão foi o Teatro Amazonas. De estilo neoclássico e inaugurado em 1886, é considerado o maior símbolo da riqueza do Ciclo da Borracha na Amazônia. Com 700 lugares, foi concebido para ser mais do que uma casa de espetáculos — uma construção majestosa que pudesse rivalizar com os teatros de Paris.
O projeto arquitetônico foi escolhido pelo Gabinete Português de Engenharia e Arquitetura de Lisboa e a execução da obra – avaliada em 60 bilhões de reais em valores de hoje, segundo os guias turísticos locais — contou com arquitetos, construtores, pintores e escultores trazidos da Europa.
A estrutura do teatro é toda de ferro maciço, importado da Inglaterra e da Alemanha, com telhas da França. Também veio da Europa boa parte dos materiais — mármores de Carrara, vidro de murano, pedras portuguesas, lustres de cristais, cobre, ouro e madeiras nobres utilizadas para forrar a construção.
A belíssima cúpula traz um mosaico com 36.000 peças de cerâmica em forma de escama de peixe. O requinte se estende às cercanias do teatro, cujo calçamento foi feito de tijolos de borracha para que o barulho dos cavalos das charretes não atrapalhasse a audição das óperas na plateia.
Outra sofisticação pode ser vista no piso do Largo São Sebastião, em frente ao teatro, de pedras portuguesas pretas e brancas, em formato de ondas, em homenagem ao encontro das águas dos Rios Negro e Solimões – que inspiraram, anos depois, a prefeitura do Rio a usar o mesmo desenho na calçada da praia de Copacabana.
Outro ciclo
O ocaso do período da “Belle Époque Amazônica”, com a perda de competitividade dos preços do látex produzidos na floresta, se estendeu até 1920 e escancarou a falta de políticas públicas para o desenvolvimento da região.
O baque foi grande não apenas para a Amazônia — a participação da borracha nas exportações do país caiu de 40% em 1910 para menos de 5% dez anos depois. Ocorreram, no entanto, duas tentativas de retomar a produção de látex na Amazônia.
A primeira se deu em 1927, quando o governo do Pará aprovou a concessão de uma área de 14,5 mil quilômetros quadrados nas margens do Rio Tapajós para o empresário norte-americano Henry Ford implantar um centro produtor de borracha na região.
A chamada Fordlândia visava a produção própria de borracha para fazer frente ao cartel britânico do produto. Os termos da concessão isentavam a montadora Ford do pagamento de qualquer taxa de exportação de borracha, látex, pele, couro, petróleo, sementes, madeira e outros bens produzidos na área.
O empreendimento, no entanto, foi um fiasco. A terra era infértil e pedregosa e o plantio incorreto das seringueiras – plantadas muito próximas umas das outras– facilitou a proliferação de pragas agrícolas, que dizimaram as plantações.
A Fordlândia também teve problemas com os funcionários, que ficaram insatisfeitos com regras que, naqueles anos, eram muito novas para os trabalhadores da região, como sirenes, relógios de ponto e até com a alimentação, à base de hambúrgueres. O projeto foi oficialmente encerrado em 1945, gerando um prejuízo de 20 milhões de dólares, em valores da época, para o empresário americano.
O chamado segundo Ciclo da Borracha ocorreu entre 1942 e 1945, em meio à Segunda Guerra, e trouxe um alento temporário à região. Ele surgiu após um acordo entre o governo brasileiro e o norte-americano para extração de látex na Amazônia. O objetivo seria fornecer borracha para a indústria automotiva americana, que havia perdido o fornecimento da Malásia após a invasão japonesa ao país asiático.
O então presidente Getúlio Vargas criou o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, instituído em 1943 para o alistamento compulsório. Uma nova leva, de cerca de 100 mil “soldados da borracha”, especialmente de nordestinos que sofriam com a seca, foram deslocados para a Amazônia.
De acordo com o economista, cientista político, professor e autor amazonense Samuel Isaac Benchimol (1923-2002), aproximadamente 500 mil nordestinos migraram para a Amazônia entre 1827 e 1960. “Esses migrantes representaram assim o maior movimento humano das migrações internas da história brasileira, superado somente pela migração pau-de-arara para São Paulo”, escreveu Benchimol no livro Amazônia: Formação Social e Cultural.
Após a Segunda Guerra, o desenvolvimento da borracha sintética enterrou de vez qualquer possibilidade de recuperar o ciclo de ouro da virada do século 20. As pretensões de manter alguma competitividade com a produção de látex foram deixadas de lado na região – atualmente São Paulo é o maior produtor brasileiro de borracha natural.
A Amazônia só voltaria a ter um projeto de desenvolvimento estruturado com a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967.