Condenado a morrer, Betinho lutou, até o último momento, pela vida.
Mas não tanto pela sua vida.
Lutou muito mais pela vida dos que são massacrados pela fome.
A memória de Betinho reclama uma resposta.
Seu corpo cremado nos cobra um compromisso.
Betinho propôs um desafio aos brasileiros.
Que em mutirão vençamos o flagelo da fome.
A fome tem pressa, disse Betinho, com extrema racionalidade.
Condenado a morrer, Betinho lutou, até o último momento, pela vida.
Mas não tanto pela sua vida.
Lutou muito mais pela vida dos marginalizados e oprimidos, dos que são massacrados pela injustiça brutal que é a fome.
Não pode haver, na sociedade brasileira, figura que simbolize melhor o grito contra a fome.
Betinho estava predestinado a ser, como é, um Profeta contra a Fome.
Estando Betinho, no Reino de Deus, junto a Jesus Cristo, a luta continua.
E deve continuar com mais vigor ainda, sob a chama da vida de Betinho, sob a inspiração desse ser humano incomum que, com muita razão, Frei Leonardo Boff proclamou como “santo”.
Que se multiplique por este país, de todas as formas possíveis, o eco ao apelo que Betinho fez, em nome dos que não têm calorias nem para protestar.
A vida reservou-me a alegria de ter três encontros com Betinho: no Rio, na sede do IBASE, para atender uma convocação sua e escrever o livro “Como Participar da Constituinte”.
Mais uma vez no Rio, na Universidade Santa Úrsula, para participar de um debate com ele.
Finalmente, em Belo Horizonte, para comparecer ao lançamento de um livro seu.
Que é a fome?
Que é o ser humano?
Que é isto de “ser pessoa?”
Que é isto que chamamos de “cidadania”?
O “ser pessoa” nos oferece diversas dimensões: psicológica, existencial, comunitária, política, jurídica, social e de abertura para o transcendente.
Cada uma dessas dimensões reflete a essência do existir, do afirmar-se e do ser.
São dimensões que revelam e afirmam a dignidade de todos os seres.
Se não desabrocham essas dimensões, o significado do humano estará sendo desprezado.
A cidadania é uma dimensão do “ser pessoa”.
O psicológico, o existencial, o ontológico exige esse componente político e jurídico, para realizar-se em plenitude.
A cidadania passa pelo “ser pessoa”: ninguém pode ser cidadão sem ser pessoa porque “ser pessoa” é um pré-requisito existencial.
A cidadania acresce o “ser pessoa”, eis que projeta no político, no comunitário, no social, no jurídico, a condição de “ser pessoa”.
Não pode florescer a cidadania se não se realizam as condições do humanismo existencial.
Dentro da realidade brasileira de hoje, milhões não têm as condições mínimas para “ser pessoa”; não são também cidadãos.
Josué de Castro já havia denunciado, no seu tempo, a fome como “problema social”.
Graciliano Ramos, nos seus romances, retratou a fome como problema político.
A fome não brota do céu. A fome tem causas na terra, nas injustiças imperantes.
Josué e Graciliano sofreram exílio e prisão por dizer uma verdade óbvia.
Parecem-nos chocantes as sociedades que estabeleciam ou estabelecem expressamente a existência de “párias”, na escala social; mas temos, na estrutura da sociedade brasileira, “párias” que não são legalmente ou expressamente declarados como tais, mas que “párias” são em verdade.
São “párias” e têm seus descendentes condenados à condição de “párias”.
São “párias” porque estão à margem de qualquer direito, à margem do alimento que a terra produz, à margem da habitação que a mão do homem pode construir, à margem do trabalho e do emprego, à margem do mercado, à margem da participação política, à margem da cultura, à margem da fraternidade, à margem do passado, do presente, do futuro, à margem da História, à margem da esperança.
Só não estão à margem de Deus porque em Deus confiam.
Mas essa situação não é inevitável.
Se ficamos de braços cruzados, tudo vai continuar assim.
Mas se a memória de Betinho nos acordar, nós venceremos a suprema negação do Direito que é a fome.