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Brava

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Já chorou descontroladamente?

Aquele choro dolorido e triste que vem lá do fundo do coração e vai saindo sem pedir licença?

O choro que dá a sensação de abandono, desamparo…

Ela chegou a casa, bateu a porta com todas as forças que possuía, sentou-se no chão e chorou.

Não foi aquele choro que começa discreto e vai crescendo não.

Seu choro já nasceu adulto, alto, forte.

Sentada ali, encostada na porta da sala, Ela chorou como há muito não chorava.

Ela, que era a irmã mais velha de uma família com cinco meninos, aprendera desde cedo que choro era coisa de menininha.

Cada vez que escutava alguém dizer a um de seus irmãos:

“Não chore! Homem não chora. Deixe essas lágrimas para serem derramadas por sua irmãzinha.”, ela ficava brava e chorava menos.

– Como assim, deixe as lágrimas para a irmãzinha? Por que sou menina tenho de viver chorando? Quem falou? Pois eu não sou chorona, eu sou brava!

Por fim, em sua cabeça, foi ficando a ideia de que chorar era coisa para meninas bobas, não para ela.

Como não era uma menina boba, simplesmente não chorava.

Cada vez que tinha alguma necessidade de choro durante a infância e adolescência, fazia sua cara mais brava, falava, discutia, engolia se fosse o caso e seguia em frente.

No fim, já estava profissional na arte de engolir o choro.

Assim, Ela foi passando por tudo e todos na vida.

Cada vez com menos lágrimas, cada vez mais “brava”.

Ela acompanhara a gravidez da Amiga desde aquele primeiro zap:

“Amiga, estou grávida!”

A brava, que ainda não era mãe, sabia do desejo que a Amiga sempre tivera de ter filhos.

Desde a infância, fora mãezinha de bonecas, cachorrinhos, ursinhos encardidos  e a todos, sem distinção, tratava com carinho.

Agora, enfim chegara a hora em que o sonho se tornava realidade: ela estava recheada de amor, ia ser mãe.

A felicidade que sentia pela realização do sonho da Amiga era tão grande que não dava nem para contar.

Saiu de onde estava correndo, comprou o menor sapatinho que encontrou e foi beijar a barriga da “buchudinha”.

Daquele dia em diante, passou a ligar para ela todos os dias, perguntar seus desejos, fazer comidinhas especiais, levar mimos:

“Criatura, com tanta comida que você me traz, vou acabar virando uma bola. Tem gente aqui dentro comendo comigo, mas só mais uma boca, não precisa de tanta comida não!”

Ela logo colocava a mãezinha em construção no lugar dela:

– Essa menina tem que saber que, quando a tia aqui chega, tudo vira festa e, em festa, tem comida gostosa. Só estou ensinando minha sobrinha.

A Amiga começava a rir:

“Quem te disse que é menina?”

– Eu sinto!

E, assim, os meses foram passando: telefonemas quase a ponto de torrar o saco da mãe, visitas, adivinhações para tentar alguma coisa que parasse no estômago da enjoada, sapatinhos, roupinhas e mensagens de WhatsApp. Milhares, milhões delas.

E, um dia, o telefonema:

“Vou fazer a primeira ecografia, quer ir comigo?”

– Tá ficando louca? Claro que quero.

E lá foram as duas.

Todo mundo sabe que, na primeira ecografia, não dá para ver se a criaturinha é menino ou menininha, mas Ela não estava nem se importando, queria ver sua sobrinha nadando.

Foi toda serelepe.

Durante o exame, silêncio.

#É a primeira ecografia?

“É sim.”

Silêncio.

A médica ia e vinha com aquele negócio na barriga da grávida, muito séria, sem falar uma só palavra.

Até que lá pelas tantas, quando Ela já quase enfartando:

# Foi sua primeira tentativa?

“Primeira tentativa do quê, doutora?”

# Inseminação artificial?

A buchudinha arregalou os olhos:

“Teve nada artificial aqui não, moça, foi tudo natural mesmo.”

A médica olhou admirada para a mãe, abriu um largo sorriso:

# Sério? Que encanto! Você será mãe de três pessoinhas que estão graciosamente dividindo a mesma placenta!

O silêncio, agora, mais que absoluto.

Durou apenas alguns segundos.

Depois foi tanta gritaria, tanto escândalo das duas que até a médica entrou na festa.

Lá pelas tantas:

“Explica doutora, explica para gente, pelo amor de Deus, o que significa isso!”

# Você será mãe de três crianças do mesmo sexo e idênticas.

A mãe assustada:

“Meu Jesus do céu, que aventura! Tenho que avisar para o pai deles.”

Ela, que já estava empolgada com a história de ser tia de um, agora então, não cabia em si.

Saíram dali direto para o shopping:

– Preciso encontrar mais duas peças de tudo aquilo que já comprei. Pensei que era só um sobrinho, mas vou ganhar é três. Ai, meu Pai, que feliz.

A partir daquele momento, Ela falava para todo mundo que seria tia de três meninas.

“Eu não sei quem te disse que serão meninas.”

-Ninguém disse, eu sinto.

Chegou o dia de saber o sexo.

Da sala de exame a médica telefonou para outra amiga que não Ela para contar o sexo, a moça seria responsável pela organização do chá revelação.

#Pensei que seria sua amiga que veio aqui com você na primeira ecografia que faria o chá.

“Pode não, doutora. Se aqui não estiverem três meninas, a hora que eu olhasse pra ela saberia, a pobre não consegue disfarçar decepção.”

Elas riram.

Chegou o dia da festa e lá Ela ficou sabendo que seria tia sim, de três meninos.

A bichinha ficou murcha por trinta segundos e disparou:

– Eu senti triplamente errado. Tem problema não, minha gente, vou aprender a ser tia de menino para que, quando a Amiga tiver meninas,  eu esteja bem treinada.

E continuou feliz curtindo a gravidez da amiga.

Em vez de cor-de-rosa, seus sonhos de tia passaram a ser azuis, só isso mudou.

Com o passar do tempo, o avanço da gestação, os desafios foram aparecendo.

Vieram  a internação e a sentença:

# Mãezinha, eles estão querendo nascer antes da hora. É preciso ficar internada, pernas pra cima, sem levantar nem para banho para a gente segurar esses rapazinhos no forninho até a hora certa.

Ela praticamente mudou-se com a amiga para o hospital.

Revezava com o pai dos meninos o tempo todo.

Tornou-se profissional em carregamento de comadre, em distração de grávida acamada, animadora de gestante.

Sofria a cada visita médica e exame detalhado em que descobria que o colo do útero estava se abrindo e não havia mais o que pudesse ser feito.

Todas as providências foram tomadas, todos os recursos utilizados, mas, por mais que a Amiga estivesse quase de cabeça para baixo para tentar fazer com que os bebês ficassem ali, não teve jeito, eles nasceram com 23 semanas de gestação.

Dois ainda não estavam completamente formados.

Esses não conseguiram.

Eram muito pequenos, frágeis demais.

E Ela, sentada ali no chão da sala, chorando desesperadamente, se perguntava o porquê de tudo.

Não havia o que fazer, era só chorar.

A Amiga, que estava muito mais sofrida que ela, ficara no hospital se recuperando do parto, e Ela fugira para chorar.

Ficou ali por horas, chorando alto, jogando fora toda sua frustração e dor.

Lá pelas tantas, se lembrou:

– Dois se foram, mas ainda tem um pequenininho lutando pela vida na incubadora. E minha amiga? Ela precisa de mim!

Foi até um espelho, olhou para si e deu uma bronca:

– Pare de chorar! Muitas coisas incríveis ainda estão por vir. Tome um banho e volte pra lá agora, esqueceu que você é brava?

Ajuntou a si mesma, fez do seu ombro o mais forte dos lugares e voltou para junto de sua Amiga, que precisava dela mais que nunca.

 

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