A frase que dá título a este texto é uma espécie de síntese do difícil ano de 2020. A pandemia da Covid-19 exigiu redefinição dos parâmetros de sociabilidade, dos arranjos econômicos hegemônicos, seja na esfera da produção e do capital, seja na esfera das relações de consumo e do funcionamento das instituições privadas e públicas em todo o mundo. Entretanto, as mudanças e ajustes realizados não deram conta de redefinir os padrões de violência racial, exclusão e genocídio de indígenas e negros no Brasil.
Aqui, o racismo se mostrou imune à pandemia e a todos os deslocamentos realizados em seu combate. Das políticas de enfrentamento ao covid-19, baseadas nas condições do homem médio branco, urbano, letrado, vinculado a tarefas laborais que comportam a manutenção de atividades em home office e com acesso garantido aos produtos sanitizantes necessários à higienização recomendada como medida primária para a prevenção. Em todos os estudos feitos até aqui, as vítimas preferenciais da pandemia se contabilizam junto às camadas mais vulneráveis, especialmente entre negros e indígenas, concorrendo para a aceleração do histórico genocídio que abate anualmente parcela destes grupos raciais em escala de letalidade equiparável à de guerras de alta intensidade destrutiva.
Na esfera da segurança pública, verificou-se a ampliação das ações abusivas e letais das forças de segurança nas comunidades negras, exacerbando mortes escandalosamente injustificáveis, como a de dezenas de crianças negras em todo o Brasil. Nem mesmo a correta decisão do STF desautorizando as incursões sanguinárias nas comunidades cariocas conseguiu interromper este roteiro trágico.
Também na esfera das relações sociais, acesso ao trabalho e sobrevivência com o mínimo de dignidade etc tivemos uma afetação desproporcional junto aos segmentos negros em todo o país. Desemprego, perda de renda, exclusão escolar, privação de serviços básicos como saneamento e até mesmo acesso à energia elétrica, marcaram os efeitos desproporcionais da crise instalada pela pandemia.
Na contramão desta dinâmica, ergueu-se a mais expressiva mobilização antirracista das últimas décadas, impulsionada em dois níveis. No plano internacional, como reação ao assassinato brutal de George Floyd, exibido em imagens fortes que circularam por todo o mundo e incendiaram corações e mentes com compromisso com justiça e democracia. No plano local, o Movimento Negro colocou o dedo na ferida e combinou a denúncia referente às violações agravadas pelo contexto da pandemia, com a apresentação de proposições e a mobilização de parcelas da mídia e da opinião pública para o reconhecimento da urgência da pauta de combate ao racismo. Aqui, merecem destaque primordial as reações dos familiares de milhares de pessoas negras assassinadas em intervenções criminosas das forças de segurança pública. Em todo o território nacional pipocaram protestos e denúncias corajosamente sustentadas por mães e pais, irmãos, parentes e vizinhos das pessoas brutalizadas. Noutras frentes, auto-organização comunitária, atos públicos, militância nas redes sociais, cobrança de autoridades, produção de documentos e denúncias em fóruns, mobilização eleitoral de candidaturas e agendas antirracistas, repercutiram na contramão do negacionismo que setores conservadores e representantes governamentais tentaram ressuscitar, em período recente.
Dentre as muitas manifestações, destacamos duas, pelas possibilidades de desdobramentos para o próximo período. A primeira, o Manifesto Democracia não combina com racismo, produzido pela Coalizão Negra por Direitos, articulação que conta com a participação de mais de 170 organizações espalhadas pelo território brasileiro. Não se trata de uma peça retórica, mas de um firme posicionamento que se dirige às instituições públicas e privadas exigindo um imediato reconhecimento da urgência política da agenda antirracista. A segunda, materializou-se pela conquista de cotas de 30% de participação negra nas instâncias da Ordem dos Advogados do Brasil.
Além da importância de engajar a OAB na luta antirracista e democratizar suas estruturas e políticas, servindo de exemplo para outras instituições, o fortalecimento da advocacia negra pode fortalecer a consolidação de uma rede de suporte às mobilizações contra o racismo e desenvolver uma forte intervenção jurídico-institucional, sem precedentes na história nacional. Esta vitória deve ser creditada a uma mobilização plural que deu prosseguimento a uma agenda multigeracional, iniciada em 1770, por Esperança Garcia, intensificada no século XIX por Luiz Gama, retomada no final do século passado pela Rede Nacional de Advogados Negros e Antirracistas, amplificada pelo ingresso expressivo de pessoas negras nas fileiras da advocacia nesta última década. E, mais recentemente, numa ousada iniciativa de juristas negras, na III Conferência Nacional da Mulher Advogada, em março deste ano e, no segundo semestre, pelo Movimento de Juristas Negras e Negros, que promoveu a articulação da Advocacia Negra, em âmbito nacional, em franco processo de organização, produzindo um irresistível convencimento da urgência da adoção das políticas afirmativas de cotas raciais e paridade de gênero nas estruturas da OAB, produzindo uma vitória coletiva que reanima as esperanças e confirma a força e potência da resistência negra no país.
Contudo, estas vitórias não devem ser vistas sob uma ótica triunfalista ingênua que menospreze a grandiosidade dos desafios e a complexidade das tarefas de enfrentamento ao racismo e genocídio no Brasil. Até porque, neste contexto também se apresentam manobras de cooptação e integração, reduzidas a uma estratégia de modificações cosméticas, produção de marketing social e expiatório e distribuição de migalhas para revivificar o desmoralizado e insustentável mito da democracia racial, mitigando a potência transformadora da ação coletiva e organizada do povo negro brasileiro.