Se havia no ano um dia extraordinário e esperado por muitos, este era o dia de finados. No sertão baiano onde nasci, residi por muitos anos em frente ao cemitério municipal. De casa, eu testemunhava a maioria das coisas que nele aconteciam. O cemitério era uma grande construção do século XIX que abrigava os cadáveres daqueles que um dia naquela terra se encontraram. Às vésperas do dia dois de novembro, no dia de Todos os Santos, comumente chegavam algumas pessoas trazendo água e sabão; arrancavam os matos que nasciam entre as pedras, destruíam os ninhos que os pássaros faziam, varriam as folhas que caiam dos colossais pés de eucalipto que ali estavam plantados, e lavavam tudo para que, no dia seguinte, os defuntos recebessem suas visitas.
E assim acontecia. À primeira luz do alvorecer já apareciam os devotos a cumprir suas obrigações. Na longa calçada de pedras dispostas em placas que dava acesso à porta do cemitério, sentavam-se vendedores ambulantes trazendo seus produtos que eram, em sua maioria, velas, fósforos e flores. Alguns, no jardim de casa, colhiam as mais belas flores; outros, por sua vez, preferiam mesmo comprar aqueles vasos de flores artificiais. Fossem quais fossem, era o melhor que tinham a oferecer à memória dos seus ancestrais e amigos.
Feito um sinal da cruz, cruzavam os umbrais daquela que, certamente, virá a ser a sua morada. Ali jaziam pessoas de todo tipo: de coronéis a escravizados, de políticos a populares, de homens a mulheres, de idosos a recém-nascidos, de católicos a protestantes. Assim como os que neles faziam morada, os túmulos também eram variados. Alguns eram antigos e imponentes; outros mais modestos; uns em pequenas capelas familiares e outros ainda no chão cru cobertos por uma generosa camada de terra vermelha. À sua cabeceira, quase sempre uma cruz, sinal de morte, mas também de esperança de ressurreição para aqueles que creem.
Quando não se sabia ao certo onde estava a sepultura, ou mesmo quando esta estava em outro lugar tornando impossível a visitação, acendiam uma ou mais velas aos pés de um cruzeiro que ficava no interior do cemitério. Orações, lágrimas, risos e histórias. Muitos eram lembrados; outros, padeciam pelo esquecimento. Alguns túmulos há décadas não recebiam visitas e ameaçavam desmoronar a qualquer momento; outros, de tão bem cuidados e limpos, faziam-nos pensar que ainda nem haviam sido estreados.
Esse movimento rompia até o anoitecer. Por medo, alguns preferiam ir durante o dia. Outros, fugindo do calor ardente do sol, preferiam a visitação sob o frescor da noite. De toda sorte, era o momento mais bonito. Quando escurecia, as velas ainda acesas iluminavam o cemitério deixando um clima de tranquilidade e, parece até um contrassenso, de vida.
Acontece que as velas se consumiam, as flores murchavam e todos os vivos voltavam para as suas casas. No dia seguinte, o cemitério voltava ao seu estado normal: silêncio e pouco movimento. As aves voltavam a fazer os seus ninhos no topo dos túmulos mais altos, as gramas se permitiam crescer por entre as pedras, e os eucaliptos, estes despejavam as suas folhagens com vontade por sobre os túmulos como se dissessem: ah, os vivos!
Salve, João Marcos, nosso futuro grande escritor.
Parabéns pela crônica formidável. Um memorialismo sinestésico e uma maturidade autoral de destaque