Olhos atentos e língua afiada.
Daqueles que não perdiam nada a sua volta, daquelas que transformavas em palavras tudo que passava pela retina.
Ela se orgulhava de falar tudo que queria para quem bem entendesse:
“Falo tudo em tom de brincadeira. A pessoa pensa que é só graça e ninguém fica com raiva.” – gabava-se.
Sempre sorridente, parecia ser a mais agradável de todas as criaturas.
Era tão natural sua maneira de “ser sincera”, “falar verdades”, que, à primeira vista, ninguém nem reparava a ponta de intromissão e grosseria que permeava suas palavras.
Quando era apresentada, sondava o ambiente rapidamente e começava a destilar suas observações sorridentes e ácidas.
Era uma companhia agradabilíssima no início, mas, com a distribuição de sua sinceridade sobre roupas, cabelos, filhos, maridos, esposas e tudo o mais, as pessoas iam se afastando. Por mais que tentasse, Ela sempre acabava sozinha.
Algumas vezes, metia-se em confusão.
Falava tudo que queria e o alvo de suas observações não gostava e reagia.
Quando isso acontecia, ela ficava muda como estátua e, ao final do discurso indignado de quem tivera a vida publicamente criticada, simplesmente falava:
“Eu não sabia que não podia brincar com você. Pensei que tivesse mais senso de humor. Desculpe-me.”
Falava e se retirava como se vítima fosse.
Passava alguns dias em silêncio e, muitas vezes, a pessoa ofendida vinha até lhe pedir desculpas.
Ela se via, outra vez, dona da situação e voltava a fazer o que era de praxe.
Em consequência das palavras desenfreadas, estava sempre mudando de emprego:
“Fui demitida injustamente.”
Quando os namoros pareciam ir de vento em popa:
“A mãe dele implicou comigo e não deu para continuar. Sabe como é: a gente acaba namorando a família inteira.”
E, assim, quando criticava e observava tudo e todos de um grupo, mais cedo ou mais tarde se afastava, era afastada.
Até que, um dia, o conheceu.
Ele, um rapaz extremamente fino e educado.
Agradável e de poucas palavras, mais observava que emitia opiniões.
Sempre ponderado, falava o que achava somente sob consulta.
Ao chegar à empresa, foram formalmente apresentados para trabalharem no projeto para o qual ele fora contratado.
Ela rapidamente achou isso e mais aquilo para criticar no rapaz.
Resolveu, naquele dia, se calar, afinal, ele chegara para ser o coordenador do projeto, portanto, seu chefe imediato.
Melhor o silêncio momentâneo.
E, assim, Ela virou sua metralhadora giratória para os colegas, aos quais já conhecia, e seguiu a vida.
Até que, um dia, Ele encontrou uma colega da equipe chorando na escadaria.
Procurou saber o motivo das lágrimas e, depois de alguma insistência, ficou sabendo que fora Ela e sua sinceridade.
Lembrou-se rapidamente de que já ouvira outras reclamações sobre o comportamento da moça e resolveu tomar providências.
Desculpou-se com a ofendida e lhe garantiu que aquilo não mais aconteceria.
Foi até sua sala, pesquisou alguma coisa na Internet e saiu para o almoço mais cedo.
Durante o almoço Ela ficou sabendo que havia ofendido sua colega ao falar do seu peso e cabelo.
A reação foi a de sempre:
“Eu estava apenas brincando.”
Quem contou da ofensa teve o cuidado de falar também que o novo chefe a vira chorando e que pedira desculpas pela grosseria que a moça havia sofrido.
Nessa hora, Ela se preocupou.
Como assim? Ele pedira desculpas por algo que Ela fizera?
Ficou preocupada, mas resolveu pensar que nada mudaria.
Ao voltar do almoço, encontrou sobre sua mesa o maior arranjo de flores que já vira na vida.
No meio das flores um bilhete:
“Todas são incrivelmente belas, mas nenhuma absolutamente perfeita. Gaste seu tempo no todo, no belo e esqueça o que, pra você, não é perfeito.”
E o bilhete continuava:
“Ao terminar de ler, venha até a minha sala.”
Ela leu e releu aquele bilhete sem querer entender o que realmente significava.
Repensou rapidamente tudo que já havia falado perto do novo chefe e se lembrou da menina da qual havia criticado o peso e os cabelos logo cedo.
Seu sangue gelou.
Mas por que as flores?
Como, no bilhete, tinha uma intimação, Ela resolveu encarar o inevitável.
Passou no banheiro, escovou os dentes, arrumou a maquiagem e foi conhecer o motivo das flores.
Chegou à porta e bateu timidamente:
“Com licença.”
Atrás de sua mesa Ele abriu um largo sorriso:
– Gostou das flores?
Ela, que não tinha mais espaço para tanta sem-graceza, ficou parada no meio da sala:
“Gostei muito. São lindas.”
Ele mexia em alguns papéis sobre a mesa e disse ainda sorrindo:
– Sente-se, fique à vontade. Vamos conversar. Você quer uma água, chá, café, refrigerante? O tratamento aqui é VIP.
Ela sentou na ponta da cadeira. Muito ereta e tensa, recusou educadamente:
“Muito obrigada, estou bem.”
Nessa hora, Ele respirou fundo, mudou o semblante, ficando mais sério, e debruçou-se levemente sobre a mesa. Olhando fixamente para os olhos da moça, começou falando calma e pausadamente como lhe era peculiar:
– Acredito que você desconfie do motivo pelo qual lhe mandei flores, não é mesmo?
Ela, que já não respirava normalmente desde que entrara na sala, respondeu no mesmo tom:
“Não tenho muita ideia do real motivo.”
Ele deu um sorriso de canto de boca e mandou uma nova pergunta:
– Você não sabe o real motivo, mas ao menos desconfia do que se trata?
A moça se ajeitou, passou as mãos nos cabelos:
“É sobre o que falei com a Menina hoje pela manhã?”
O sorriso do chefe desapareceu sem que Ele perdesse a serenidade no olhar:
– Gosto do seu trabalho desde a primeira vez que o vi. Você tem uma incrível capacidade criativa, seu dinamismo é contagiante e trabalhar com você é tranquilizador já que sua proatividade é notável.
Nessa hora, Ela se ajeitou no fundo da cadeira, abaixou um pouco os ombros:
“Muito obrigada.”
Com a mesma tranquilidade que falara até então, Ele continuou:
– Mas, infelizmente, você não sabe tratar as pessoas. Seu humor ácido e sua sinceridade ferem e maltratam aqueles que estão à sua volta.
Ela voltou cruzar os braços.
– Essa manhã o elevador estava demorando muito e eu resolvi ir ao quinto andar pelas escadas. Levei o maior susto ao encontrar a Menina, entre um andar e outro, chorando desconsolada.
Nessa hora, Ela já estava sentada na ponta da cadeira novamente:
“Eu só brinquei com ela. Que exagero!”
Enquanto brincava com duas canetas, Ele continuou:
– Depois que ela parou de chorar, eu fui conversar com as pessoas, saber se você é sempre assim, se não era uma implicância particular. Não preciso contar o que fiquei sabendo, você sabe qual é sua conduta aqui na empresa.
Nessa hora, Ela já estava vermelha, com as mãos suando, pernas inquietas:
“Eu não faço nada demais, só brinco com as pessoas, as faço rir.”
Ele abandonou as canetas e voltou a encará-la com seriedade:
– Você é uma mulher inteligente e sabe que brincadeira só é brincadeira quando ambas as partes se divertem. O que você faz é potencializar aquilo que as pessoas não gostam em si mesmas e usar isso para ridicularizá-las. Sabe também que expor as pessoas em público da maneira que fez com a Menina hoje e que vem fazendo ao longo do tempo- porque estou aqui há poucos dias e já vi você fazer com outras pessoas-é muito longe de ser sinceridade. Quer que eu dê nome a isso que você faz?
Ela, que não era acostumada a ser confrontada dessa maneira com tanta educação e firmeza, já tinha os olhos cheios de lágrimas:
“Por favor, não precisa nomear.”
Ele continuou com o olhar firme nos olhos da moça:
– Preciso sim. Você tem que saber o nome daquilo que faz com quem está à sua volta. E eu vou contar pra você: o que faz é falta de educação e respeito.
Silêncio.
A moça de cabeça baixa, Ele olhando firmemente para Ela.
Foi quando Ela se recompôs, ficou ereta novamente, ajeitou os cabelos e, olhando o chefe nos olhos, perguntou no tom de voz mais baixo que encontrou em meio a sua perplexidade:
“Então por que as flores e o bilhete? Para que o senhor quer acabar comigo desse jeito?”
Ele franziu a testa admirado, chegou mais perto da moça que pôde:
– Eu não mandei flores para te acabar. Não estou brigando com você nem querendo te humilhar ou coisa parecida. O que te falei aqui foram coisas que alguém já tinha que ter dito a você ao longo da vida. Foi uma pena que ninguém tenha feito isso antes. As flores foram para te mostrar que, mesmo elas sendo tão belas, não são perfeitas, assim como você: é uma mulher bonita, interessante, mas não é perfeita. Assim como a Menina, como eu e todas as pessoas que estão por aí.
Ela voltou a abaixar a cabeça e Ele continuou falando:
– As flores são para que você se lembre de que todos temos beleza e encanto, mas todos temos defeitos e que você, até hoje, em nome do humor e da sinceridade, tem evidenciado o que não é tão legal, ao menos o que as pessoas não acham tão interessante nelas mesmas. As flores são um convite a você.
Ele parou de falar e esperou que Ela o olhasse novamente:
“Um convite?”
Ele sorriu e abaixou ainda mais o tom de voz:
– Um convite, nobre senhorita, um convite para que você comece a praticar o silêncio das flores, mas, quando for falar algo de alguém ou para alguém, detenha-se no que fará a pessoa feliz, no que for bom, for belo. Naquele arranjo que você recebeu, tem uma flor amarela, bem no meio. Ela está com as pétalas externas bem estragadas, mas as internas estão lindas, perfeitas. Eu te convido a olhar apenas para as que estão perfeitas, esquecer as estragadas.
Ela chorava sem conseguir se controlar:
“Acho que magoei muita gente pela estrada da vida, com esse meu senso de humor desagradável e essa sinceridade desnecessária. Vou lembrar-me das suas palavras de agora pra frente. Sempre.”
Ele sorriu e disse satisfeito:
– Espero sinceramente ter ajudado você. Gosto muito de tê-la em minha equipe e gostaria de que todos tivessem prazer em sua companhia também.
Ela se acalmou, limpou o rosto e, ao despedir-se do chefe, confidenciou:
“Vou me desculpar com a Menina, acho que, com ela peguei, realmente pesado.”
E saiu dali com o firme propósito de espalhar sorrisos em vez de lágrimas.
Vivi Antunes é ajuntadora de letrinhas e assim o faz às segundas, quartas e sextas no www.viviantunes.com.br