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Estivadores e Leiloeiros

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Terminei de ler um livreto que comprei sobre políticas culturais. Queria livrar-me dele o quanto antes. Teimei em contrariar a crítica de um professor que tive na universidade aos estudantes que leem esses livretos (O que é isso ou aquilo; Como funciona isso ou aquilo; etc.); em sua opinião, tínhamos que, na pior das possibilidades, produzi-los; melhor ainda, recomendava-nos ler algo mais acadêmico e denso. Dou-lhe razão porque, numa dessas tentativas de compressão do conhecimento, encontram-se reducionismos, superficialidades e até disparates.

Menciono uma das besteiras daquele mesmo livreto. Ao separar a sociedade brasileira em classes, seus autores deram exemplos de grupos de pessoas que consideram marginalizadas: negros, indígenas, homossexuais, prostitutas e estivadores. Busquei a palavra no dicionário para confirmar se era isso mesmo que deram por excluídos: estivadores. Estes são trabalhadores que manipulam cargas de navios. Só não entendi por que eles se classificaram como marginais pelos autores daquele lamentável livreto de políticas culturais. Talvez porque o trabalho manual (em contraposição ao trabalho intelectual), desde a formação do Brasil, tem movido nosso “moinho de gastar gente”, segundo expressão de Darcy Ribeiro.

Mantenho desconfiança no que se refere à gestão do Estado. Muitos dos administradores da Máquina pública no Brasil são europeus de quinta categoria disfarçados de brasileiros sensíveis. Isto se deve ao método concurseiro de gerir nossa coisa coletiva sem um conhecimento profundo do Brasil e dos brasileiros.

Há os que vão mais longe em sua ousadia. Na incapacidade (ou falta de vontade) de reconhecer a autenticidade da civilização brasileira, acabam forjando nossas identidades em função de suas convicções, crenças e preconceitos. Exemplo eminente deste processo resulta do afã integrador dos meios de comunicação. A versão brasileira de The Voice está menos preocupada com as exclusões sociais (como no livreto que citei acima) que com a hipnose de seus espectadores.

Noto algo mais concreto sobre o poder dos meios de comunicação quando, em visitas que faço a casas de amigos e familiares, os anfitriões deixam o televisor ligado e alternam os olhares entre mim e a tela. Mais grave que emitir um breve comentário sobre o que passa na televisão é quando esta determina a pauta das conversas em ocasiões diversas. Uns opinam sobre os cantores de The Voice, enquanto outros criticam as falcatruas do Félix na novela Amor à Vida.

Agentes que sabem tirar proveito dos aparatos tecnológicos (celulares, tablets, televisores, etc.) têm determinado a pauta (o que se discute) e o momento em que se discutem certos assuntos. Cito temas de telenovelas, debates da rádio e redes sociais na Internet. Embora pareça exagero de minha parte, vivemos atrás de grades (portões altos, enredados, eletrificados e enclausurados) com a coleira presa a equipamentos eletrônicos que nos mantêm passivos e obedientes.

Tenho cada vez mais segurança em dizer que quase não assisto à televisão nem tenho Facebook; prefiro folhear livros de várias ciências em vez de gastar meu tempo assim. A Internet, contudo, é uma das maiores invenções do século XX na medida em que nos transforma, quando assim o desejamos, em produtores e agentes ativos de processos culturais. Foi através dela que os brasileiros alçaram suas demandas políticas e sociais através dos protestos de junho de 2013.

Estivadores e leiloeiros têm em comum o labor de ganhar a vida lidando com mercadorias. Aqueles manipulam cargas marítimas como fonte de renda e vida, enquanto estes ditam preços para vender produtos. Assim, estivadores e leiloeiros infundem reflexões edificantes sobre identidade no Brasil.

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