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Helena da Catinga

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O sol, que um pouco antes varava os galhos do sombroso imbuzeiro florido, ali ao lado do vetusto tamarineiro, já infértil, mal se escondera e o negrume da noite penetrou impiedoso o terreiro e o interior da tosca cabana, com paredes revestidas de taipa grossa, coberta de palhas, entremeada com telhas comuns usadas, ali na manga do fundo da Quixabeirinha, fazendola catingueira nos arredores do Bom-I-Zú. No diminuto quartinho de casal, silencioso, de porta fechada com tábuas de mandacaru, a parca luz de um fifó, modesto e bruxuleante, tentava alumiar as suas integrantes: Sara a parturiente e Vó Congonha, respeitada parteira daquelas circunvizinhanças. A primigesta, deitada numa sólida cama com cabeceira de peroba-do-campo e leito de varas de catinga-de-porco, tudo coberto por um honesto colchão, estofado cuidadosamente com marcela, bem como os travesseiros, asseados lençol de morim e colcha de retalhos coloridos, mantinha-se tranquila e serena, porquanto muito confiante na tão propagada habilidade da assistente ali defronte.

Lá fora, Pablo, estava sentado num sólido banco de braúna, na portinhola da morada, com a escassa luz de uma lamparina de azeite tremeluzindo no canto da minúscula sala, assentada sobre uma mesa, arrodeada de quatro cadeiras com assentos de couro de boi, armações do soberbo e venerando amargoso. Via-se, no outro canto, um rústico banco de considerável tamanho, extraído de um cepo da utilíssima aroeira, mal lapidado porquanto lavrado com machado e polido a enxó goiva, como se podia entrever, inclusive salientando o seu cerne, dito móvel em forma de ele (L) e com o recosto um tanto inclinado, lembrando um grosseiro trono, pelo conforto que sugeria. Ali, com sua mansidão característica, Pablo sustinha uma lambida palha de milho no canto da boca, amassava, entre as mãos, pequenos pedaços triturados de fumo de rolo do Comercinho do Bruno, antes desbastados criteriosamente de um toco daquele, com seu canivete capa-garrote “Corneta”, prévia e cuidadosamente afiado em pedra de amolar trazida da Serra das Éguas. Cria ele que o costumeiro cigarro de palha trar-lhe-ia, como em outros momentos tais, a tranquilidade que a situação exigia. Afinal ia ser pai pela primeira vez, como, em verdade, sempre sonhara. Ensimesmado, ruminando as circunstâncias, torcia para que viesse um menino, um futuro lavrador ou vaqueiro como ele, enquanto a mulher queria uma menina, uma companheira em sua sorte. De toda maneira, quem viesse teria de cursar uma escola decente, pois ambos, marido e mulher, mal conseguiram frequentar o MOBRAL, demagogo programa de educação do Governo.

É bem verdade que as alcoviteiras das redondezas, como sói acontecer com a gente desocupada daquele árido sertão, atribuíam, covardemente, àquele a paternidade de um menino, nascido antes do casamento apenas religioso, como convinha ao povo sertanejo, pois só aquele casório era verdadeiramente válido, o único que trazia as graças do Todo-Poderoso, jamais levando ao adultério e separação, inclusive dos amasiados. Tal injúria jamais preocupou a esposa que, além de conhecer as circunstâncias, atestava, na brandura e explicações do fiel marido, a sua corajosa e já longa distância daquele indigitado rebento.

Sara (“soberana, princesa”), disputada empregada doméstica lá na cidade, morena alta e de corpo atraente, olhos amendoados e cabelos negros, assim se chamava em virtude do semitismo de seu pai, Sebastião, judeu enrustido. Já o ansioso Pablo, nome de origem espanhola, pele escura tisnada pelo inclemente sol da catinga, um pouco mais baixo que a esposa, corpo musculoso forjado pelo briquitar diário, pai do nascituro, foi batizado realmente como Filisbino (do germânico – “muito ilustre”), tendo recebido tal cognome do seu patrão Gilberto, de quem era exímio vaqueiro e ordenhador, aquele fanático por touradas, coisa muito apreciada quando da chegada de circos mambembes na região, especialistas em tal atividade. Aliás, era regular fornecedor de touros de sua propriedade, renomados pela brabeza, como acentuavam os toureiros medíocres que os enfrentavam.

Vó Congonha, de baixa estatura, nem gorda nem magra, negra retinta, que só tinha de branco o globo ocular, cercando duas aveludadas íris, mas de lábios normais, só criou filhos, ironicamente, por adoção, ainda que aparadeira de renome, como acima se frisou. Constatou-se, algures, que era maninha e como era cambaia (ou cambota?), diziam as más línguas que urinava entre parêntesis, o que, certamente, não concorria para sua infecundidade, e além do mais seu marido Ernani sofria de azoospermia, como se constatou em acurado exame de esperma a que se submeteu.

Não demorou muito e um choro franzino ecoou vindo lá do quarto, anunciando uma robusta menina, sem causar nenhuma dificuldade ao trabalho de parto, para completa felicidade dos pais. Assim despontou para o mundo, Helena, nome escolhido anteriormente pela novel mamãe, com plena concordância do marido.

Depois do necessário e suficiente tempo para a delicada e cuidadosa ablução da recém-nascida, Vó Congonha saiu de lá com ela nos braços com um simples vestidinho chitado e a negra cabecinha coberta com uma singela touca de crochê, acima do róseo rosto. Ao entregá-la ao pressuroso pai ele a susteve, apenas por alguns instantes, entre suas calosas e vigorosas mãos, devolvendo-a temeroso de imediato.

Logo após deitar a criança ao lado da mãe, onde Pablo vislumbrou silente um quadro divinal, e já de volta à sala, Vó Congonha, prendendo entre o polegar e o indicador uma pitada de torrado, enfiou-a nas narinas, deixando exalar seu aroma característico. Era, segundo afirmou, viciada em rapé desde menina, e solícita:

— Por que Helena? — quis saber uma curiosa parteira, cujo nome verdadeiro era Joselita Guimarães, após inundar a casa com o delicioso cheiro de congonha, cujas folhas foram colocadas adrede de infusão, como lhe era costumeiro, daí seu apelido que se tornou nome de rua na cidade. — Eu achava que deveria se chamar Eronildes, nome da sua respeitada avó — sugeriu.

— Helena, Vó Congonha  —  responde lá de dentro a ciosa mãe -, nóis fiquemo sabeno que qué dizê “luminosa, tocha, luz”, cuma tá iscrito num tal livro qui mandemo pricurá. Diz, tamém, qui é nome de um samba véi qui a gente iscuta muito no rádio.

— Eu já ouvi dizer — falou com inusitada sofisticação a velha negra —, que era uma mulher grega, que até virou um filme, “Helena de Tróia”. Helena é realmente um nome muito bonito. Tomara que não me venham chamá-la de Leninha ou mesmo Lena. Tomara mesmo.

E continuou tagarela:

— Amanhã é dia de Nossa Senhora Aparecida e dizem os ricos que é, também, Dia da Criança. Assim sendo ela escapou de se chamar Aparecida (Cida Cidinha), nome que anda de monte pelo Brasil, terra que tem muito mais pobre do que rico.

Como é antigo costume ali na roça, dois litros de temperada, ou seja, cachaça contendo ervas, frutas, folhas e raízes várias (losna, raiz de corre-canto, quebra-pedra, carqueja, junco-de-lagoa, folhas de figo e de erva-doce, pau-d’arco, imburana macho e até alho – quando é chamada de feijoada) para alegrar as visitas, mesmo as mulheres que lá entornam como qualquer macho. Era, por outro lado, para os mais chegados, aperitivo para o tradicional pirão de parida, no mais das vezes a farinha de mandioca no caldo de galinha caipira, carregado no cominho, engrossado com o saboroso maxixe, tudo bem acompanhado por um “litrão” de pimenta malagueta, bem vermelha, infusa, com pimenta de cheiro, em vinagre de cana caiana.

Pablo, meticuloso, antes já chamara Sinh’Ana, a vizinha, para ficar ali com Sara, enquanto ia acompanhar Vó Congonha até o Jacaré, montado no alazão de serviço, emprestado pelo patrão para qualquer eventualidade, enquanto a parteira ia na sua velha e lerda égua queimadinha, daí porque ele, sabidamente, andava sempre na frente, como na vinda quando foi buscá-la.

Por falar em Jacaré, Pablo integra o requisitado terno de lá, quando da Festa dos Santos Reis, que, aliás, se aproxima, por já estarmos em outubro, onde toca gaita de taquara com relativa perfeição, acostumado a exibir-se, com solicitude, em tocatas de bandas de pífanos. Foi acompanhando o seu terno, quando girava pelas fazendas a fora, que Sara o conheceu e brotou um namoro sério, respeitável e duradouro, tendo recebido o consentimento formal do irascível genitor.

— Pablo — alertou a cara-metade lá do leito —, liga o rádio pra eu e Sinh’Ana lhe isperá. Vê se num delata por lá. E acrescentou ciosa: — Comemoração, neca de catibiriba, qui amenhã de madrugada tem labuta.

A vizinha, tricotando uma peça rosa, seu singelo presente para a recém-nascida, refestelada no banco referido, também escutou, por uma destas coincidências que só o além sabe deduzir, pois o diligente vaquejador mal chegara à cancela de saída para o seu destino, quando no gasto aparelho, de marca Mullard, alimentado a acumulador, oferendas do dileto sogro, e que ficava bem ao lado da lamparina, a voz inconfundível e marcante do conhecido locutor Ubiratã Cardoso, anunciou, com sua usual empáfia ao microfone:

— E agora, como dantes prometido para esta noite, ouçam o velho e eternamente belo samba de Antônio Almeida e Constantino Silva, “Helena, Helena”, na inigualável e soberba interpretação do saudoso Ciro Monteiro, acolitado pelos “Anjos do Inferno”:

 

“Eu ontem cheguei em casa, Helena,

Te procurei e não encontrei,

Fiquei tristonho a chorar,

Passei o resto da noite a chamar, (bis)

Helena, Helena, vem me consolar. (bis)

 

Mesmo depois de cansado,

Teu nome eu falava baixinho,

Helena dos meus encantos,

Vem me fazer um carinho,

Eu fiquei desesperado,

Cadê Helena, meu bem?

O dia já vem raiando

 E minha Helena não vem…

(Porque será?)”

Ninguém escutou o enrustido pranto da afortunada parida, agarrada fervorosa e carinhosamente à sua cria.

E o dia 12 de outubro amanheceu radioso por receber mais uma criança, sinônimo de grande alegria para a humanidade.

Com carinho, afeto e ternura do tio-avô e recompensado pai-casamenteiro,

TIÃOZITO.- B. Hte. (MG), outubro/2015.

 

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