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HISTÓRIA SARNEYSISTA

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“Talvez esse episódio seja apenas um acidente que não deveria ter acontecido na História do Brasil”. Foi com essa ignominiosa frase que o presidente do Senado Federal, José Sarney, sustentou a exclusão do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello da história recente do país. Com seu defectivo sapato lustrado, cuja origem remonta o suado bolso do tolo contribuinte brasileiro, o imortal literato maranhense esfregou na cara do país a ímpar capacidade de nossa classe política em compreender o poder e o valor da democracia e de como, em mãos equivocadas, podem ser frágeis as linhas que nos chancelam enquanto nação.

Quando o presidente do Congresso Nacional decide manipular a história e extrair de suas páginas o último movimento político popular de grande monta, estamos diante não apenas de um desdenho institucional, mas da tentativa torpe de macular um tempo, de apagar páginas históricas que não podem – e não devem – ser esquecidas. José Sarney afronta a dignidade, a honra e o orgulho do povo brasileiro. São indeléveis da história do país os milhões de jovens com suas caras pintadas que invadiram as ruas e exigiram que o então presidente da República, acusado de alta corrupção, fosse defenestrado de sua cadeira no Palácio do Planalto. Revoga-se qualquer disposição em contrário, ainda que vinda de um presidente-coronel, comandante de uma nau de néscios engravatados – esses sim, cada dia mais desprezíveis.

Alguns podem até imaginar que há muito barulho por nada na questão. Mas a decisão  de extrair os painéis e os textos que relatam o processo de impeachment de Collor da exposição histórica no chamado “Túnel do Tempo” do Senado Federal é emblemática  quanto à expectativa de subserviência e aniquilação cultural que a classe política dispõe à sociedade. Vide a recente querela dos erráticos livros didáticos do Ministério da Educação e a posterior citação de seu ministro – que conseguiu a proeza inversa de tentar justificar os genocídios de Stalin – e temos um extraordinário exemplo dos tipos “sui generis” a quem as “canetas” são concedidas nesse país. E quantos mais ainda serão “tiriricas” ou “severinos”?

Mas como é possível um senador ter tanto poder? Fernando Henrique Cardoso abraçou José Sarney em seu governo. Lula beijou a mão do agora amapaense coronel ludovico. Dilma Rousseff fez e faz questão de estruturar seu governo no campo gravitacional do maior bigode político da nação. O que podemos concluir disso? O sistema político e eleitoral do Brasil é tão anômalo e insano que a um homem capaz de destroçar seu estado natal por décadas e figurar como um dos piores presidentes da República, ainda é dado o poder de pisar, desdenhar e enodoar a história do país,
mantendo uma espécie de soberania capaz de transformar mandatários em títeres e seus pares em patetas desprezíveis.

José Sarney é apenas o principal expoente vivo dessa linhagem política decrépita. Um homem com poderes quase sobrehumanos e cujo chão onde pisa é diariamente lambido e chafurdado pela vara bem vestida que o segue, contempla e reverencia. O inacreditável – e inabalável, diga-se de passagem – poder que lhe é outorgado obriga-nos a revisitar com constância nossa própria história na tentativa de encontrar quais pecados absurdos cometemos e que nos façam merecer tamanho degredo e punição. Muito provavelmente, escamotear painéis da História do Brasil seja uma tentativa risível de nos poupar da constatação de que nossa República ainda é um feudo e de que nossos notáveis “senhores” não conseguem – e não querem – nos admitir enquanto cidadãos.

A manutenção plena e absoluta da influência do imortal José Sarney, esse ser político inamovível, faz-nos lançar dúvidas sobre a nossa própria compreensão do que seja a administração de um Estado democrático. Fossemos realmente um país sério e politicamente engajado, a escória da sociedade não estaria em Brasília disfarçada sob togas ou recebendo auxílios-paletó. Fossemos, de fato, uma democracia consolidada e inteligente, já teríamos banido esses coronéis constitucionais e a Praça dos Três Poderes já teria deixado de ser uma capitania hereditária talhada em mármore e concreto. Mas, ao que tudo indica, a narrativa brasileira insiste sustentar-se em uma história sarneysista.

Triste assim.

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Jornal Digital Jornal Digital – Edição 745