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Imaturidade intelectual

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Quando um grupo, em geral autoproclamado “seleto”, alcança o protagonismo da formação intelectual de uma nação e faz uso deste “poder” para dizimar o plural, o resultado inequívoco é a ascensão da bestialidade como fio condutor de gerações. Os impactos desse crime doloso são sentidos por décadas. Os estribilhos da História, sistematicamente, ofertam aos seus observadores e partícipes exemplos contundentes desta, digamos assim, “modalidade” de devassidão. Não por acaso, neste momento histórico, o Brasil exibe a plenitude de sua imaturidade intelectual.

 

O caso mais recente é emblemático. Na última quarta-feira, 03 de fevereiro de 2016, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proibiu as edições brasileiras do livro “Minha Luta”, um misto de autobiografia e manifesto do líder nazista Adolf Hitler. A decisão da 33ª Vara Criminal também determina a busca e apreensão dos exemplares já disponíveis nas livrarias e nas sedes das editoras Centauro e Geração Editorial, além de proibir sua exposição e publicidade em quaisquer ambientes, sob pena de multa diária. A decisão obscurantista atendeu pedido do Ministério Público fluminense, alegando tratar-se de obra que incita e dissemina o racismo e a intolerância.

 

Antes de qualquer outra consideração, é preciso questionar o óbvio: o que Ministério Público e Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro esperavam encontrar no manifesto nazista de Hitler? Um tratado de autoajuda? Um compêndio de exaltação aos Direitos Humanos? Convenhamos, a decisão judicial, além de obscura, é patética.

 

Ademais, “Minha Luta” é um documento histórico. Nenhum cidadão brasileiro precisa apresentar justificativas científicas ou acadêmicas, ideológicas ou meramente historiográficas, para ter acesso à obra, num atentado “politicamente correto” — alcunha inventada para traduzir a hipocrisia que abunda e atrasa — ao conhecimento, instrumento basilar para o pleno exercício das liberdades e da democracia. Proibir e cercear a obra, definindo-a exclusivamente como fomentadora de ilicitudes penais, para além de rebaixar os leitores brasileiros à réstia dos incapazes de compreender e formular suas próprias teses e críticas, presta um enorme desserviço à História, uma vez que o livro exibe a origem doentia e nefasta dos descalabros protagonizados por Adolf Hitler.

 

Deveria ser dispensável — e não é, tendo em vista a decisão infame — fazer lembrar aos juízes e promotores do Rio de Janeiro o recentíssimo acórdão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, sobre a publicação de obras literárias biográficas. Muito especialmente o trecho eternizado pela relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, quando cravou em seu brilhante voto, um estudo profundo com mais de 120 páginas e clareza meridiana: “Na ciranda de roda da minha infância, alguém ficava no centro gritando: ‘cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu’. O tempo ensinou-me que tentar calar o outro é uma constante. Mas, na vida aprendi que, quem por direito não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito. Também aprendi que a vida conjuga-se no plural.”

 

Não espanta, portanto, que o “projeto criminoso de poder” — nas palavras de outro ministro da Suprema Corte, o decano Celso de Mello —, sob o mesmo viés adotado agora pela Justiça do Rio de Janeiro, esteja fazendo uso da estrutura institucional do Ministério da Educação para implementar o tal Currículo Nacional Único, que bem pode ser definido como uma esquizofrênica Revolução Cultural Febeapá, recordando aqui o famigerado “Festival de Besteiras que Assolam o País”, de Stanislaw Ponte Preta, heterônimo do saudoso Sérgio Porto.

 

Estima-se que, em meados de 2016, o MEC petista da presidente Dilma Rousseff tentará impor à formação intelectual das crianças e adolescentes brasileiros um código de silêncio e cerceio ao amplo conhecimento, limitando o ensino aos interesses político-ideológicos de um grupo que literalmente gafanhotou e destruiu o país, mas que ainda pretende deixar como legado às próximas gerações seu monumental déficit intelectual. O único entrave a este projeto demente — antecipando as devidas escusas ao jornalista William Waack pelo uso de sua assertiva — é que “essa oposição nova que surge nas ruas não passou pelo ‘submarxismo’ característico da deformação intelectual profunda de boa parte dos movimentos de esquerda no Brasil, inclusive em relação aos ‘clássicos’ que nunca leram… e se leram alguma coisa, não entenderam.”

 

Reiterando repúdio ao pedido do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e à decisão do juiz da 33ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça, retomemos as palavras da atual vice-presidente do STF, ministra Cármen Lúcia: “Sem verbo, há o silêncio humano, muitas vezes desumano. Por isso, a Constituição do Brasil e outros textos declaratórios de Direitos Fundamentais e de Direitos Humanos garantem como núcleo duro e essencial da vivência humana a comunicação, que se faz especialmente pela palavra. ‘O princípio era o verbo’. No Direito, o princípio e os fins definem-se em verbo. O sentido, o sabor e o saber da comunicação humana, que conduzem à sua história, de cada um e de todos, põe-se na palavra. Palavra é liberdade e convivência para a libertação das pessoas e dos povos.”

 

Um livro, seja lá qual for seu conteúdo, não pode e não deve ser proibido e encerrado ao esquecimento. Aquele que discorda ou condena o verbo de uma obra literária, que se empenhe ao trabalho de escrever outro livro refutando-a com os argumentos que julgar legítimos. Pessoas inteligentes o fazem. Por sua vez, os medíocres preferem proibir, cercear, escamotear, enclausurar o verbo alheio e acabam passando à História pela imaturidade intelectual que os consome e dilacera.

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