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Invisíveis, mas perigosos

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Pesquisadores da Unicamp detectam contaminantes emergentes a partir de novas técnicas analíticas

 

Texto: Luiz Sugimoto Fotos: Antonio Scarpinetti Edição de Imagem: Luiz Paulo Silva

 

Os contaminantes emergentes são assim chamados porque falta legislá-los, ou seja, estabelecer valores máximos permitidos em matrizes como rios, águas subterrâneas ou água potável. No entanto, o processo regulatório não é trivial. Um exemplo clássico destes contaminantes é o 17α-etinilestradiol, hormônio usado nas pílulas anticoncepcionais, cujo critério estabelecido internacionalmente com base em ensaios toxicológicos, que não oferece risco para a saúde humana, é de 30 picogramas (milionésimos de micrograma) por litro. Ocorre que, na prática, não existe uma ferramenta analítica capaz de quantificar concentração tão baixa desse contaminante na água – logo, não há como transformar o critério em lei, mesmo sabendo que o hormônio nos faz mal.

“O equipamento que possuímos trabalha com um limite de 10 nanogramas por litro, cerca de 300 vezes maior”, compara a professora Cassiana Carolina Montagner, responsável pelo Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química (IQ) da Unicamp. “Se detectamos o hormônio neste equipamento, significa risco à saúde, pois está bem acima do critério descrito pela literatura internacional. Mas, se não detectamos, não significa ausência do hormônio; talvez ele esteja presente em concentrações que o equipamento não consegue medir. É uma falsa interpretação que estamos sempre tentando corrigir. Hoje, nenhum país do mundo legisla sobre o 17α-etinilestradiol porque não há como monitorá-lo nessa concentração.”

A docente do IQ observa, contudo, que a ecotoxicologia é uma área que vem avançando rapidamente, devendo oferecer novos valores em breve. “A literatura sobre contaminantes emergentes está crescendo muito na interdisciplinaridade entre monitoramento e técnicas analíticas. Uma verdade que a ecotoxicologia nos mostra é que as concentrações de compostos que causam risco à saúde e ao ambiente são muito baixas. Estamos progredindo cada vez mais nos testes e apontando valores máximos (critérios) em concentrações menores, enquanto a instrumentação analítica vai buscando quantificar esses compostos nessas concentrações.”

O grupo de Cassiana Montagner tem dois trabalhos publicados visando este avanço científico em relação aos contaminantes emergentes, ambos em veículos da Sociedade Brasileira de Química: o primeiro na Química Nova, procurando traçar um panorama nacional das pesquisas para saber quais são as classes de contaminantes emergentes de maior interesse, em diferentes matrizes; o segundo trabalho foi publicado este ano no Journal of the Brazilian Chemical Society (JBCS), levantando o que já se sabe sobre o tema, a partir de dez anos de pesquisas no Laboratório de Química Ambiental – e com foco no estado de São Paulo, que tem a maior densidade populacional do país e alta exigência de água para irrigação, indústria, pecuária e consumo humano, nesta ordem.

Foto: Scarpa
A professora Cassiana Carolina Montagner, coordenadora das pesquisas: “A literatura sobre contaminantes emergentes está crescendo muito na interdisciplinaridade entre monitoramento e técnicas analíticas”

A revisão de pesquisas sobre contaminantes emergentes, publicada na Química Nova, resultou em uma lista de 56 artigos publicados em 20 anos (1997-2017), que revelam a ocorrência de cerca de 200 compostos em águas residuais, superficiais e potável em 11 dos 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. A região Sudeste apresentou o maior número de estudos, principalmente território paulista, que ostenta padrões de consumo semelhantes aos de países desenvolvidos, acumulando, no entanto, problemas ambientais típicos de países em desenvolvimento, relacionados especialmente à falta de saneamento.

Já o artigo no JBCS retrata a ocorrência de 58 contaminantes em 708 amostras de águas de beber, de rios, subterrâneas e residuais, todas coletadas no estado de São Paulo, entre 2006 e 2015: são nove hormônios, 14 fármacos e compostos de cuidado pessoal, 8 industriais, 17 agrotóxicos e 10 drogas ilícitas.  “Na verdade, já tínhamos muitos dados de ocorrência em diferentes matrizes e queríamos interpretar os números para uma avaliação de risco. Criamos um banco de dados a partir de teses e artigos e buscamos critérios na literatura internacional que pudessem nos nortear tanto em relação à proteção da vida aquática nos rios, quanto para a saúde humana considerando a ingestão da água de torneira que consumimos”, esclarece Cassiana Montagner.

Conforme a professora, seguindo os critérios da literatura, vários compostos apresentaram risco para a vida aquática, como cafeína, paracetamol, diclofenaco, 17β-estradiol, estriol, estrona, testosterona e triclosan. Em relação aos critérios para a água potável, estavam presentes 22 compostos, sem risco de efeitos adversos nas concentrações encontradas.  “É importante esse olhar para a proteção da vida aquática, que às vezes não é prioridade das agendas, mas que precisamos considerar, inclusive agora diante dos objetivos do desenvolvimento sustentável estabelecidos pela ONU. A saúde humana chama mais atenção das pessoas e em princípio não haveria um risco direto associado aos compostos, exceto pelo hormônio, que é muito potente em nosso organismo.”

Exposição crônica

Além do hormônio da pílula anticoncepcional, os agrotóxicos são muito ativos e também estão presentes nessas concentrações residuais, o que leva a pesquisadora da Unicamp a esclarecer outro ponto importante. “A concentração é menor que os valores permitidos em nossa legislação e de outros países, mas a exposição crônica aos agrotóxicos e o efeito endócrino ou mesmo neurológico que podem causar, não está contemplada no valor máximo estabelecido – e a água é uma via de exposição contínua, uma fonte direta de onde bebemos todos os dias. E, claro, temos ainda a ingestão de alimentos e, dependendo da região, a inalação de pesticidas.”

Os fármacos são igualmente bioativos e suas moléculas estão na água de beber e nos rios, ainda que em concentrações menores do que as doses ingeridas para tratamento. “É mais um problema associado à ingestão de um pouco, porém, todos os dias. As pessoas se assustam quando dizemos que bebemos fármaco, produto de higiene, cafeína e até cocaína. A fonte é a mesma, todos estão juntos. Os efeitos não são agudos, ninguém vai morrer amanhã por conta disso. A questão que chama atenção é o desencadeamento de uma série de doenças que podem ser potencializadas devido a essa exposição crônica”, pondera Montagner.

Outro aspecto destacado no artigo do JBCS é que as concentrações dos vários compostos encontrados no esgoto e nos rios são da mesma ordem de grandeza, mesmo no Sudeste, que possui um dos maiores índices de tratamento de esgoto do país. “Os índices de saneamento em São Paulo são considerados de bons a excelentes. A indicação é de que o tratamento de esgoto não remove os compostos ou de que há muito esgoto bruto sendo lançado nos mananciais. Ou, ainda, de que o tratamento convencional não é efetivo, o que requer melhorias nos sistemas existentes. Nós pesquisadores temos claro que a qualidade da água de torneira é um reflexo do manancial: se os contaminantes que estão no esgoto vão para o rio, vamos achá-los também na água de beber.”

Modernização do sistema

Na opinião de Cassiana Montagner, o sistema de saneamento básico deve ser repensado em sua totalidade, a fim de atender ao padrão de vida atual. “Há poucas décadas, não tínhamos uma exposição tão grande a essa quantidade de compostos, exceto a alguns metais e agrotóxicos. O sistema tradicional não foi projetado para esse tipo de contaminação. Em uma palestra, estimulei o público a descobrir de onde vinha a água que chegava à sua casa, ir até o manancial e se perguntar se nadaria nele. É uma forma de a população conhecer o seu redor, fazer uma primeira avaliação e questionar os órgão de governo.”

A docente da Unicamp assegura que existe tecnologia para purificar a água eliminando inclusive os contaminantes emergentes, e que poderia ser adaptada às plantas atuais, tanto de tratamento de água como de esgoto. “Tenho trabalhado com colaboradores para trazer a tecnologia empregada em outros países para a realidade brasileira. Acontece que é preciso investir no replanejamento das plantas e também em pesquisa. Como os responsáveis não são cobrados, não se tem uma motivação muito grande. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde morei por alguns meses, é comum beber água da torneira e nadar nos rios que atravessam os centros urbanos. Lá, os tratamentos convencionais são usados apenas em água captada de mananciais protegidos: o esgoto passa por uma série de tratamentos e o efluente lançado não causa impacto no rio. Ou seja, há todo um sistema de saneamento básico capaz de proteger os animais e os seres humanos dos resíduos gerados pelas atividades antropogênicas.”

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