Quais os desafios que se colocam diante dos juízes, dos juristas em geral e da Justiça?
Parece-me que esses desafios se resumem em cinco: o desafio hermenêutico; o desafio ético; o desafio político; o desafio cultural e o desafio humanista.
Tentemos discorrer sobre isto.
Conceituamos como desafio hermenêutico aquele que se coloca para o intérprete da lei e o aplicador do Direito.
No desempenho do papel de aplicador do Direito, o juiz pode ser um ator social a reboque da estagnação ou até mesmo do retrocesso, ou pode ser uma força a serviço do progresso.
Como não pode haver, racionalmente, uma hermenêutica plantada na neutralidade axiológica, o juiz terá de fazer uma escolha entre duas visões de Direito:
- uma visão conservadora, que pretende que o Direito é uma obra acabada, sempre apto a gerir os conflitos, dentro de categorias lógicas e inflexíveis;
- outra visão – progressista, dialética, – que vê o direito como permanentemente inacabado, um Direito que se aperfeiçoa com a dinâmica da própria vida.
O segundo desafio de nossa proposta é o desafio ético. Trata-se de assegurar o valor “Justiça”, acima simplesmente do valor “lei”.
Não podemos aceitar que, como juristas, sejamos arquitetos de uma pretensa sociedade previamente bem organizada porque fundada na liberdade e numa igualdade formal perante a lei.
O apelo ético deve ser questionador de toda a estrutura legal. Daí entendermos que juízes, advogados, promotores de Justiça, assessores jurídicos não sejam servos da lei.
Entre dois valores, – a Ética nos guia, – devemos decidir pelo valor de maior hierarquia. Entre o culto da lei e o culto do Direito, o valor de maior hierarquia é o culto do Direito.
O terceiro desafio de nossa linha de raciocínio é o desafio político. O desafio político é, em síntese, o desafio de realizar as expectativas sociais de uma Justiça que interfira positivamente no jogo das forças presentes na sociedade, que jogue um papel no aperfeiçoamento democrático, na construção democrática.
O desafio político obriga o juiz a debruçar-se sobre as necessidades sociais. Essa postura infelizmente não tem tradição na prática de nossas varas e tribunais.
O enfrentamento do desafio político levará o julgador a recusar uma visão de mundo e de sociedade naturalmente harmônicos, sob a égide imparcial do Estado, desvio muito bem analisado por Rui Portanova.
No equacionamento do desafio político, o jurista ultrapassará a racionalidade jurídica formal para alcançar também a racionalidade jurídica material. Buscará atender às necessidades da maioria desprivilegiada da população, como aconselha Celso Fernandes Campilongo.
O desafio cultural é o penúltimo de nossa proposta. O juiz é presença cultural na sociedade, líder, educador, especialmente no vasto interior brasileiro.
Sabemos que a realidade da vida prática, problemas pessoais e familiares dificultam às vezes a residência dos juízes nas comarcas. Contudo, sempre que se torne possível essa presence, o juiz pode prestar redobrado serviço à coletividade. Não apenas porque a residência facilite a prestação jurisdicional em sentido estrito. Também para que o juiz atenda ao desafio cultural que estamos mencionando.
Finalmente, a nosso ver, o mais importante desafio que se coloca à Justiça é o desafio humanista. O juiz não é uma máquina de produzir sentenças, não é um operador de silogismos a superpor premissas dentro de um quadro lógico.
A tarefa de julgar não pode ser desligada do ser humano, feita de abstrações. Só será possível o “encontro” com a pessoa humana, se o juiz libertar-se da “memória cativa das leis”. Quanto esforço essa libertação exige… Parece que o psicanalista Marcelo Blaya Perez, que percebeu com tanta profundidade esse cativeiro, teve algum juiz como paciente…
Será, a nosso ver, na solução do desafio humanista que se coroará todo o esforço hermenêutico, ético, político e cultural do ofício de julgar.