Ontem foi aniversário do meu pai.
66 anos.
39 deles ao meu lado.
Todos os dias.
Com essa convivência tão intensa, é claro que tenho muitas e muitas histórias para contar sobre ele.
Sobre nós.
Até porque somos absurdamente iguais e, por isso, temos paixões, amores e desencantos idênticos.
Ele e só ele sabe exatamente o que fazer para me deixar feliz, contente, radiante e sorridente, assim como também me irritar profundamente.
E faz.
Os dois!
Existem algumas dessas histórias que são memoráveis.
Nunca vou esquecer o dia em que ele me emprestou o carro limpo, revisado de tanque cheio e eu o bati.
Mas não foi qualquer carro e também não foi qualquer batida.
Era sábado e, na sexta-feira, no fim da tarde, ele chegara com o carro tinindo.
O Vermelhinho em questão havia sido comprado zero e naquele dia acabara de passar pela revisão dos 10.000.
Por já estar parado para a “consulta de prevenção” mesmo, havia tomado um banho no capricho.
Como você pode ver, tratava-se de um carro especial, afinal era seu único carro e por isso era tratado com cuidado, porque, se esse quebrasse, o meio de transporte oficial passava a ser o busão.
No sábado pela manhã eu e o Irmão, que cantávamos em um coral, fomos nos apresentar em um bairro longe, bem longe de casa.
“Pai, empresta o carro? Vamos ter apresentação hoje de manhã.”
“A chave e o documento estão em cima do balcão.”
Eu entendi as coordenadas como um sim.
Naquele coral cantávamos sempre de preto, por isso, nós dois nos fantasiamos de “urubu” e lá fomos nós.
Nessa época o Irmão não dirigia, por isso, fui guiando a longa distância toda toda.
Enquanto para lá nos dirigimos, preciso contar uma coisinha que vai fazer sentido lá no fim da história:
Eu amo comida queimadinha.
Não é torrada, esturricada não.
É passado do ponto um pouquinho.
Quando o assunto é pão e biscoito de queijo, principalmente, quando está queimado só um pouquinho, me agrada plenamente.
Chegamos à igreja naquela manhã de sol, estacionamos e fomos cantar.
Esse coral era regido pelo tio Clemente e nele cantavam nossos primos Marly e Paulinho.
Não me lembro de quantas pessoas faziam parte do coro àquela época, mas éramos poucos, tanto que o grupo se chamava Madrigal.
Cantamos e fomos embora.
Lá no estacionamento, quando eu já ia encontrar o Vermelhinho, que estava à nossa espera, minha prima me grita:
– Vivian, minha mãe fez biscoito de queijo, você quer?
– Claro, Marly!
Eu não gosto de queijo, eu sou uma ratinha mineira!
Fui até o carro deles, peguei o pacote de biscoito e voltei toda feliz.
Quando entrei, peguei lá no fundo do saco um que tinha a parte que ficara em contato com a forma completamente queimada. Era o biscoito da “bunda” preta.
Deliciosos.
Fui comendo, conversando com o Irmão e uma amiga, além de dirigir.
Não sei o que eu fiz, mas quando acabei de sair do estacionamento e entrar na avenida principal o “biscoito da bunda preta” caiu à minha esquerda.
Eu que devia estar andando a 08km/h abaixei para pegá-lo.
No que eu abaixei para a esquerda, virei o volante para a direita e taquei o carro no poste mais próximo!
Como você pode ver, tratava-se de uma batida especial!
Tendo em vista que o poste, coitado, não estava atravessando a pista em ziguezague e que esta que vos fala não estava bêbada nem com crise de labirintite, a batida foi algo realmente fora do comum.
Acabou com a frente e lateral do pobre carro.
Assim, destruição completa mesmo.
O Irmão só saiu inteirinho graças a Deus e ao cinto de segurança.
A Coleguinha que estava no banco de trás, sem cinto, tinha um dente não tão confiável, que com a pancada perdeu o resto da confiança que tinha. Fugiu de sua boca da moça.
Eu fiquei completamente desesperada e no meu desespero telefonei para o meu pai!
– Pai, taquei o seu carro no poste – falei me acabando de tanto chorar.
“Você está bem? Seu irmão está bem?”
– Pai, o lado direito dele acabou, pai. Destruiu tudo.
“Você está bem? Seu irmão está bem?”
– Pai, amassou muito.
“Menina! Eu quero saber de você e do seu irmão. Vocês estão bem?”
– Estamos sim, mas o carro…
“Vocês estão bem, então, está tudo certo. Estou indo aí.”
Ele não falou uma só palavra sobre a destruição do carro.
Nunca!
Nenhuma piadinha, nada.
Trabalhou mais de um mês, o tempo em que o carro ficou na oficina, a pé, com carro emprestado, de ônibus.
No dia em que o Vermelhinho ficou pronto ele estava com um carro emprestado. Era um final de tarde igual àquele que ele chegara aqui com o carro revisado, limpo e de tanque cheio.
“Vivian, troca de roupa que preciso que você vá ali comigo.”
– Aonde, pai?
“Buscar o Vermelhinho, ele tá pronto.”
– O senhor vai ter coragem de me deixar dirigir seu carro outra vez?
“Você tá boba, menina? Vamos logo! Estou atrasado!”
E, assim, o pobre do carro ficou assustado ao me ver, mas não teve outro jeito, teve que ser trazido para casa por mim.
Meu pai é um cara sensacional.
Não só por me aguentar todos esses anos. Isso já seria prova suficiente do que acabei de falar.
Mas por fazê-lo com amor, paciência, carinho, tolerância e tudo o mais de tudo de bom.
Por isso e por todas as outras coisas que só nós sabemos, eu te amo, bonitão!
Feliz 24090 dias mais 1!