Henry David Thoreau inicia seu “Tratado sobre a desobediência civil” com as seguintes palavras (*):
“Aceito com entusiasmo o lema ‘O melhor governo é o que menos governa’ e gostaria que ele fosse aplicado de forma mais rápida e sistemática. Levado às últimas consequências, ele tem o seguinte significado: ‘O melhor governo é o que não governa de modo algum’, quando os homens estiverem preparados, será esse o governo que terão.”
Concordo de bom grado com a primeira das duas afirmações, pois creio, e muito já escrevi a respeito, que todos os governos que queiram ser realmente bons para todos os seus cidadãos devem cuidar de se fazer tão desnecessários quanto possam. Não digo o mesmo da segunda assertiva, ou seja, quanto à dispensabilidade de qualquer governança, pois a frase aponta para uma utopia que chega à de Marx pelo viés oposto. Também o alemão antevia, na plenitude do comunismo, o fim do Estado. Pois sim!
Thoreau era um tipo incomum, individualista e minimalista nos limites da autossuficiência, pensou segundo o modo de vida que escolheu ou, vice-versa, assim pensou porque assim viveu. Eram os Estados Unidos do século XIX, ainda escravocrata (a Guerra da Secessão aconteceria 12 anos depois de haver escrito essa obra) e ele recusava submissão a um estado que fazia guerras de conquistas contra seus vizinhos e convivia com a escravidão. Afirma no livro: “Nem por um minuto posso considerar meu governo uma organização política que é, também, governo do escravo”.
Passados 174 anos, quanto mais pode um homem de consciência proclamar sobre submissão a tantos e tantos governos corruptos e tiranos!
Quer vejamos o Estado como um mal ou como um bem, tenho como certo que após o adjetivo estará presente a palavra “necessário”. É o que aprendi com um inglês anterior a Thoreau, que escreveu uma obra importantíssima sobre a Revolução Francesa enquanto ela transcorria. Edmond Burke, esse o nome dele, valeu-se daqueles desastres sanguinários para mostrar a importância das instituições. Não é por acaso que todos os 193 países reconhecidos na ONU têm governos e mesmo duas unidades não reconhecidas como países – Vaticano e Palestina – também têm uma forma de governo.
Nosso problema, como brasileiros, é um Estado como o que temos. Um Estado que devendo assumir como tarefa primordial a superação da pobreza, apodera-se dos recursos de toda a população, inclusive dos mais pobres entre os pobres, para cuidar bem de si mesmo. Escândalo! Um Estado cuja elite se outorga ganhos milionários, cujo presidente critica os dois televisores da classe média, viaja como um sheik, hospeda-se em suítes reais e dá bolsa esmola aos mais pobres com fingida expressão de compaixão.
Cegueira extrema é discursar sobre injustiça e desigualdade entre as pessoas e não olhar para o que acontece entre o Estado e a sociedade.
Realmente, submeter-se a um Estado assim é burrice e contradição. Não quero revoluções nem sangue, mas não podemos prescindir da inconformidade, da resistência, do ânimo de revolta, nem perder ocasião para proclamar indignação, odiando e combatendo politicamente o mal como é da natureza da virtude.
* Tenho em mãos o excelente livro editado pela Avis Rara, que inclui o ensaio de Étienne de la Boétie sobre “A servidão voluntária”.