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O VELHO BELTRÃO

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O sertanejo via de regra é dotado de surpreendente capacidade definidora.

Usando uma linguagem plástica, ele traça em poucas palavras, quadros e cenas intensamente deliciosos. Caracteriza situações, fixa tipos, sublinha as qualidades dom natural das pessoas, tudo numa linha de concisão admirável.

Campeão dessa literatura oral radiográfica literatura que desarma os biombos da aparência para mostrar os nus da personalidade – foi sem dúvida alguma, o velho Beltrão da Costa Ataíde, proprietário da Fazenda Esconso às margens do Rio do Antonio, ali no município de Brumado.

Beltrão não era de cutucar o cão com vara curta. Guardava sempre os limites das conveniências.  Mas, no momento exato sua observação era um retrato de corpo inteiro ou de aspectos salientes da vida do indivíduo. 

Referindo-se a alguém que se encontrava em difícil situação financeira, saiu-se com esta: Está mais quebrado que arroz de terceira.

Quando um amigo lhe falou a respeito de certo conterrâneo muito calmo pachorrento, desses que se movimentam em câmara-lenta a frase brotou incisiva, delineadora: – É tão manso que parece que foi criado em cumbuca.

É conhecida a estória do forasteiro que chegou à cidade de Brumado com saco às costas, sem tostão, fracassado em outras terras. E virou, dentro em pouco tempo, respeitado agiota.

À sombra gostosa do tamarindeiro da Praça, um grupo conversava, até que foi mencionado o nome daquele sujeito que ali apareceu na lona e se transformou em usurário. O Capitão Beltrão ali presente, marcou o grande tento da tarde:  – Fulano chegou aqui malzinho de vida, tirado cuscuz em pé de louro.

Louro aqui é papagaio. O louro pega, segura e leva a comida a boca utilizado seus dedos e garras de trepador. Comendo cuscuz ficam-lhe, depois, entre os dedos pequenos e positivamente inapetitosos restos de comida. Se alguém tirava cuscuz em pé de louro é que a vida lhe corria de fato, dura como beira de sino.

O velho Beltrão tinha   um genro chamado Teodorico Ataíde. Este cavalheiro era ardoroso partidário do binômio sombra e água fresca. Nada fazia. Não queria nada com o trabalho no campo. Nem tampouco em outo lugar qualquer. Barbeava-se diariamente.  Sempre penteado, ficava o dia todo sentado à porta de sua casa, no Esconso, dando rédea à imaginação.

Certa feita, o Dr. Pompílio Dias Leite, Juiz de Direito e seu amigo, perguntou ao Capitão: 

– Como vai seu genro Beltrão? 

-Naquela mesma vida: – Dando água ao povo e ensinando estrada.

É que pelo Esconso passavam as estradas de São João do Alipio, Rio do Antonio, Caculé, Condeúba. E a Teodorico, que ficava sempre à porta da casa exibindo suas enxúndias, o viajante se dirigia ora pedindo um copo d’água, que o rescaldo da soalheira era demais, ora procurando saber qual era a estrada por que poderia leva-lo a um daqueles lugares.

Pedro Coqueiro, que aos sábados vinha da Fazenda Carro-Quebrado, tomava, invariavelmente o café das nove horas, com leite requeijão, lá no Esconso.  Tendo-se atrasado num desses dias de feira, o velho Beltrão mandou botar o café, mesmo sem a presença do amigo. Que era muito conhecido pelo seu costume de sair das fronteiras da veracidade. Chegando momentos depois, diz-lhe o patriarca do Esconso: 

Ô Pedro, você atrasou!

-É que lá em casa hoje, Amélia fez arroz de leite. E quando ela faz arroz de leite, eu não saio logo de casa.

– Pois comigo acontece o contrário: – quando Maria faz arroz de leite eu saio imediatamente de casa.

– Por que, Beltrão?

Porque senão eu caio dentro do tacho.

O Capitão do Esconso costumava fazer comparações interessantes e muito significativas. Assim: – Miguel é bruto como argola de laço, certa coisa é mais doce do que açúcar da Furna. E Cavalo corre mais do que notícia ruim. Ele não é abobora, mas nasceu com a flor na bunda. Isto para ressaltar que o camarada nascera sortento de verdade.

O seu espírito leve, irônico e mordaz contrastava com as observações sentenciosas do Coronel Amâncio da Silva Leite.

No começo do núcleo populacional, hoje Brumado, era a Casa dos Prazeres, que alongando o olhar solarengo por sobre a paisagem catingueira, balizava, a pouca distância o embrião da vila.  Pois bem, O coronel Amâncio casou-se com a filha do senhor dos prazeres.

Resultado da implantação de um projeto da Viação Federal Leste Brasileiro, foi que o eixo da linha teria que passar pelos terrenos da propriedade denominada Quinze de Novembro. Ao saber do fato, o Coronel Amâncio ponderou gravemente: “- Dos prazeres herdei duas prendas: – Sinhazinha e o Quinze de Novembro. O Quinze de Novembro o governo comeu. Mas a sinhazinha, em dias da minha vida, ninguém jamais, comerá”.

O velho Beltrão também possuía uma venda no Esconso. E demonstrou senso prático no comércio de pacovas [bananas]. Assim é que vendia bananas a dez por um tostão, contanto que o comprador as comesse logo. Para levar para casa, só vendia a oito.  Justificava-se: – comendo na porta da venda o freguês deixava as cascas para os porcos da fazenda. 

Deixou-o alguns discípulos, como aquele que vendo passar pela rua um sujeito de pequena estatura, magrinho, pálido, cacogênico, todo mirrado – disse à queima roupa – lá vai o salário mínimo. E que logo depois – a vista de uma jovem loura, bem alta, caneluda – exclamou:  – agora vai passando uma fanta!

Se lhe aparecia alguém que, apesar de realizando bons negócios, choramingava quebradeira e apertos, o velho sertanejo não adiava o julgamento: – Este é como gato: – comendo e miando.

O meu amigo Edvaldo da Costa Ataíde é bem um neto do velho Beltrão.

À sombra acolhedora dos juazeiros do Esconso, ali perto do curral, fala-se do caboclo de gênio que foi Euclides da Cunha. Recorda-se o que ele escreveu sobre a ramagem opulenta de um Juazeiro do lugar. Tanquinho a cinco léguas de Queimadas no dia 4 de setembro de 1897 às dez horas da noite, enquanto o acampamento dormia.

No tempo em que vamos chupando melancia. Edvaldo comunica aos assuntos uma dimensão chistosa. Dos ditos espirituosos, passa a debuxar caricaturas fidelíssimas.  Muita gente tola é apupada em seus bosquejos beltranianos. E quando lhe aplaudo o talento, ele fala de GERÔNCIO. 

Certo. Mas Gerôncio Azevedo será outro capítulo da História Sincera de Brumado.

Fonte:

Artigo de Antonio Risério Leite (brumadense), inserido no jornal do BANEB, onde trabalhava, edição de dezembro de 1966.

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