Que maravilha! As últimas décadas produziram mais tecnologia para a Humanidade do que todo o resto do século. Assistimos a uma nova ordem de avanços: drones, clones, drogas milagrosas, pílula contra a impotência, controle da Aids, entre outros. Muitas variedades de câncer – o mal dos séculos XX e XXI – já podem ser dominadas. As conquistas disparam em todas as áreas, das comunicações aos transportes, da biogenética à informática, da medicina ortomolecular à tecnologia de alimentos. Alguns dos mais avançados apetrechos tecnológicos do mundo moderno fazem a festa, entre nós, a partir desse aparelhinho que, pelo WhatsApp, nos aproxima na aldeia global. Daqui a pouco conquistaremos a tecnologia 5G e uma nova era será aberta.
Que vergonha! Nos últimos anos, o mosquitinho da aedes aegypti tem minado as energias de milhões de brasileiros, infestando famílias com dengue, zika e chikungunya, doenças do século passado, ao lado da febre amarela, da tuberculose, do tifo. Pasmem, agora, um surto de sarampo ameaça a população. Como explicar o paradoxo? A festa da tecnologia, que nos oferece a química salvadora de vida e apetrechos para o bem-estar das pessoas, e a ressurreição de doenças seculares, ceifando a vida de pessoas? Descaso, incompetência, falta de recursos, dinheiro mal aplicado, ausência de planejamento, inércia, politicagem? Tudo isso, e mais alguma coisa.
Esse mais se chama inércia moral que os governantes desenvolvem na vivência do poder. Enfrentando pressões, jogos de interesse, decisões complexas em todos os setores da vida econômica e política, os governantes acabam criando camadas que vão se superpondo e tornando dormentes seus instintos. Perdem o sentido de prioridade. Adquirem pele dura e impermeável. As grandes catástrofes já não os abalam. Mesmo eventos de impacto não disparam a adrenalina. Sua máquina psíquica entra em coma. A ebulição social não provoca quentura em suas pestanas. Até parece que só pensam na próxima eleição.
Só assim se explica o tiroteio diário do presidente Bolsonaro contra adversários, que considera comunistas, palavras ríspidas e até chulas contra protagonistas importantes da política internacional, contra a imprensa, que “só traz notícias negativas contra o governo”. E os puxões de orelha em assessores e ministros passaram a fazer parte da liturgia do poder. (Até quando Sérgio Moro suportará a fritura?)
O desemprego está acima dos 12 milhões de pessoas. Que olham desesperados para os horizontes da sobrevivência. Doenças dos tempos antigos voltam com força; a região amazônica é uma tocha gigantesca de incêndios e devastação; os tributos continuam nas alturas; a água do São Francisco, que deveria chegar aos fundões do Nordeste, deixa de correr por dutos mal conservados. Já o presidente da República, impassível, do alto do palanque, dispara verbos e adjetivos para animar seus simpatizantes e conservar 30% de seguidores que ainda lhe são fiéis. (Até quando?) A nona (ou décima?) economia do mundo não dá sinais de alento, e as margens periféricas catam centavos para garantir a sobrevivência. A extrema pobreza voltou com intensidade.
As casas congressuais até tentam votar uma agenda positiva e resgatar suas legítimas funções. Mas o Executivo não tem ajudado como deveria nessa direção. Parece desprezar a política. A união em torno de um projeto nacional não passa de uma utopia. Jair Bolsonaro insiste em querer nomear seu filho (o deputado Eduardo) embaixador nos Estados Unidos, nossa principal embaixada. A perplexidade vai às alturas. Países da Europa, a partir da Alemanha e da França, olham de maneira atravessada para o Brasil.
E aqui por perto, no Chile, até a direita – que tem vergonha dos mortos pela ditadura de Pinochet – repudia as palavras repugnantes contra a alta comissária da ONU, a ex-presidente Michele Bachelet, e seu pai, proferidas pelo mandatário-mor do nosso país. Oh, Tempora, Oh Mores (ó tempos, ó costumes) bradava nas Catilinárias o tribuno Cícero no Senado Romano contra os vícios da política de seu tempo. E por nossas plagas, até quando viveremos tempos tão vergonhosos?