Segundo estudo, portadores do problema cardíaco podem apresentar alterações cerebrais muito antes do declínio das funções cognitivas
Texto: Manuel Alves Filho Fotos: Antoninho Perri Edição de Imagem: Luis Paulo Silva
Há cerca de duas décadas, a Medicina constatou que a fibrilação atrial, um problema cardíaco que afeta perto de 1% da população mundial, poderia levar os seus portadores a uma forma de demência muito parecida com a causada pela Doença de Alzheimer. Pesquisa desenvolvida para a tese de doutoramento do médico neurologista Danilo dos Santos Silva, defendida recentemente na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, trouxe novos dados que contribuem para o melhor entendimento dessa relação, o que abre perspectiva para a definição, no futuro, de terapêuticas que ajudem a prevenir o declínio das funções cerebrais em pessoas que desenvolveram esse tipo de arritmia. O estudo foi orientado pela professora Ana Carolina Coan.
A fibrilação atrial pode ser entendida como o batimento descompassado do coração. O problema predispõe o paciente a sofrer um tipo específico de Acidente Vascular Cerebral (AVC), denominado de cardioembólico. “Quando a pessoa desenvolve esse AVC, ela também pode desenvolver a demência vascular. Ocorre que pesquisas mais recentes constataram que pessoas que têm essa arritmia, mas não tiveram AVC, também têm maior predisposição para desenvolver essa demência”, explica o autor da tese.
Segundo ele, a ciência ainda não decifrou totalmente o mecanismo envolvido na relação entre fibrilação atrial e demência, mas uma das hipóteses consideradas é que a arritmia cardíaca provocaria a redução do fluxo de sangue para o cérebro, o que por sua vez levaria à atrofia cerebral e ao consequente declínio cognitivo. “Embora nem todos os neurologistas concordem com essa linha de raciocínio, pessoalmente considero essa hipótese a mais provável”, pontua Silva.
A investigação conduzida pelo médico neurologista buscou responder principalmente à seguinte questão: por que os pacientes portadores de fibrilação atrial estão desenvolvendo demência mesmo sem ter tido AVC? “Essa questão é extremamente importante porque não devemos experimentar uma mudança na transição epidemiológica em curso. A população vai continuar envelhecendo e, portanto, mais sujeita a doenças dessa natureza. Vale salientar que a demência é, atualmente, a condição mais importante no idoso, visto que ela compromete suas atividades profissionais e sociais, entre outros aspectos”, observa o autor da tese.
O método adotado por Silva consistiu no uso da neuroimagem. “Nós analisamos imagens de pacientes para verificar como a arritmia cardíaca influencia no funcionamento cerebral. Utilizamos uma técnica que combinou o estudo anatômico com a avaliação da funcionalidade das redes de neurônios. Tais redes funcionam em sincronia para desempenhar uma função específica, como falar, formar memória e resolver problemas”, explica o médico neurologista.
O estudo promoveu, ainda, uma avaliação neuropsicológica do desempenho cognitivo dos pacientes. O trabalho foi dividido em duas partes. A primeira correspondeu à análise de somente uma rede cerebral, denominada “rede de modo padrão”, que tem sido implicada em várias doenças neurológicas degenerativas, como o Alzheimer e a Doença de Parkinson. “O que nós verificamos nessa primeira parte do estudo foi que os pacientes, mesmo sem ter tido AVC, apresentam um declínio no desempenho dessa rede. Esse resultado foi relatado em artigo publicado, no mês de março do ano anterior, em uma importante revista científica internacional intitulada Cerebrovascular Diseases”, relata o pesquisador.
Na segunda parte da investigação, Silva ampliou o número de redes neuronais avaliadas para sete. Também dessa vez, a rede responsável pelos processos cognitivos apresentou as mesmas alterações verificadas na etapa anterior. “Um dado importante é que as demais redes, ligadas a outras atividades, como as visuoespaciais, não se mostraram comprometidas”, esclarece. Em relação à análise estrutural, o que o autor da tese encontrou foram reduções discretas de pequenas regiões do cérebro, a exemplo do que demonstraram estudos internacionais sobre o mesmo tema.
No que diz respeito à análise funcional, o médico neurologista constatou que os pacientes incluídos no estudo estavam cognitivamente preservados, mas que tinham pequenas área de redução do volume cerebral. Os resultados obtidos evidenciam que portadores da fibrilação atrial podem apresentar alterações cerebrais tanto estruturais quanto funcionais muito antes do surgimento da demência. “Essa constatação indica a necessidade de continuarmos investindo em pesquisas de ponta, como estamos fazendo, para identificar precocemente pacientes suscetíveis ao desenvolvimento da demência, o que nos permitirá adotar medidas preventivas contra o avanço da doença. É importante observar que, uma vez instalado, esse tipo de demência, até onde sabemos, é irreversível e progressivo e traz importantes impactos econômicos e sociais para o país”, reforça o autor da tese.
Um dos próximos passos dessa linha de pesquisa, adianta Silva, é aumentar o número de pacientes analisados, para verificar se os resultados serão reproduzidos. “Também precisamos refinar um pouco mais o método de estudo. A ressonância equivale a uma fotografia do cérebro num determinado momento. Entretanto, existem técnicas que estão sendo desenvolvidas aqui na Unicamp que permitem a avaliação em tempo real do desempenho do córtex cerebral, que é responsável pela atividade cognitiva superior, cuja função está ligada ao pensamento e à formação de memória. Essa abordagem pode nos ajudar a decifrar o mecanismo que está por trás do processo que associa fibrilação atrial e demência”, finaliza o médico neurologista.