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Pesquisadores investigam dois dos sintomas comuns da fibrose cística

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Pesquisas têm como foco doença pulmonar crônica e o acúmulo de muco nas vias áreas respiratórias

 

Texto: Edmilson Montalti /FCM/ Especial para o JU Fotos: Antônio Scarpintetti Edição de Imagem: Luis Paulo Silva

 

A fibrose cística é uma doença de origem genética sem cura que atinge cerca de 70 mil pessoas em todo o mundo. Ela resulta na ausência ou deficiência parcial da proteína Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator (CFTR). No Brasil são aproximadamente 6 mil casos notificados de portadores da doença.

Na maioria dos países, as crianças são mais afetadas e a expectativa de vida, para as mutações graves é de, aproximadamente, 35 anos de idade. Entretanto, na era da triagem neonatal, a expectativa de vida pode chegar a mais de 50 anos para os indivíduos com fibrose cística.

Duas pesquisas conduzidas dentro do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp tiveram como foco dois dos sintomas mais comuns da fibrose cística: a doença pulmonar crônica e o acúmulo de muco nas vias aéreas respiratórias. Ambos os sintomas podem causar o declínio da função pulmonar.

O biomédico Renan Marrichi Mauch aplicou um teste baseado na detecção de IgA secretora (IgAs), um anticorpo produzido contra a bactéria Pseudomonas aeruginosa, em saliva, visando a detecção precoce do aparecimento dessa bactéria, que é a principal causadora de infecções pulmonares crônicas em pacientes com fibrose cística. Ele também buscou investigar possíveis defeitos na produção de anticorpos que podem levar à persistência da P. aeruginosa nos pulmões.

Os resultados fazem parte da pesquisa Infecção por Pseudomonas aeruginosa nas vias aéreas da fibrose cística: detecção precoce e funcionalidade da resposta imune humoral específica. A pesquisa teve como orientador o professor Carlos Emílio Levy, da FCM e, como coorientador, o professor Niels Høiby, da Universidade de Copenhague, Dinamarca.

Foto: Scarpa
O biomédico Renan Marrichi Mauch: investigando possíveis defeitos na produção de anticorpos

Já a fisioterapeuta Carla Cristina Souza Gomez buscou simular, em humanos, a aplicação de bicarbonado de sódio para normalizar a hiperviscosidade do muco produzido nas vias aéreas respiratórias. Os resultados estão na pesquisa clínica Segurança, tolerabilidade e efeitos em variáveis clínicas e marcadores laboratoriais da inalação de bicarbonato de sódio em pacientes com fibrose cística. A orientação foi do professor da FCM José Dirceu Ribeiro e a coorientação foi de Paul Marquis Quinton, da Universidade da Califórnia, e Fernando Augusto de Lima Marson, também da FCM.

As pesquisas foram conduzidas no Laboratório de Fibrose Cística (LAFIC) e no Laboratório de Fisiologia Pulmonar (LAFIP) do Centro de Investigação em Pediatria (CIPED), e no Laboratório de Imunoquímica, todos localizados na FCM.

Infecção pulmonar

Ao nascer, a criança com fibrose cística apresenta pulmões aparentemente normais. Porém, alterações na composição do muco revestindo as vias aéreas se desenvolvem, como consequência dos defeitos na proteína CFTR. Esse muco se torna espesso, acumula-se nas vias aéreas, causando obstrução, e dificultando a eliminação de microrganismos. Assim, esses microrganismos, que normalmente não causam doença em indivíduos saudáveis, se tornam danosos para o paciente com fibrose cística.

Com o tempo, as sucessivas inflamações e infecções culminam em hipertensão pulmonar e insuficiência respiratória crônica. Problemas no sistema respiratório ocorrem em mais de 90% dos indivíduos com a doença, de forma progressiva e de intensidade variável. Bactérias, vírus e fungos são os responsáveis pelas infecções pulmonares.

A infecção por Pseudomonas aeruginosa é a principal causa de morbidade e mortalidade por conta dos mecanismos de adaptação dessa bactéria ao ambiente anormal dos pulmões na fibrose cística.

De acordo com Renan, na fase crônica da infecção pulmonar a bactéria produz uma variedade de componentes para se adaptar nos pulmões, em particular uma estrutura chamada de biofilme, onde a bactéria cresce mais lentamente. O biofilme funciona com um escudo protetor contra antibióticos e contra agentes do sistema imune, de modo que é praticamente impossível a erradicação da infecção por meio da terapia com antibióticos.

“Por isso, a detecção precoce da Pseudomonas por meio de um teste executável na rotina clínica é fundamental. A IgA secretora é o principal anticorpo e a barreira imunológica mais importante nas mucosas, onde atua impedindo a aderência e a penetração dos microrganismos. Esse anticorpo pode ser detectado em saliva, que é uma amostra muito fácil de ser coletada. Nosso teste é baseado em Ensaio de Imunoabsorção Enzimática (ELISA). É um teste simples, barato, e várias amostras podem ser analisadas em um único dia”, explica Renan.

O diagnóstico da infecção pulmonar por Pseudomonas é comumente feito pela cultura microbiológica de amostras de vias aéreas do sistema respiratório. O escarro é a amostra de referência, porém, a maioria dos pacientes – principalmente crianças menores de sete anos – não é capaz de expectorar uma quantidade suficiente de escarro para a realização do exame, que é feito a cada três meses na maioria dos centros de referência.

Renan adotou esse teste para medir a concentração de anticorpos contra a Pseudomonas na saliva de 102 pacientes com fibrose cística com idade entre 2 e 30 anos. Também testou a habilidade do teste para detecção precoce da bactéria em um acompanhamento de três anos de 65 pacientes atendidos no ambulatório de fibrose cística do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp.

Em geral, o teste foi capaz de detectar níveis aumentados de IgAs contra a Pseudomonas em saliva até 22 meses antes da detecção por cultura de material respiratório ou sorologia. A sensibilidade do teste foi de 87%. “Se o paciente mostra um resultado negativo do teste, há 92% de probabilidade de que ele não tenha infecção pulmonar crônica”, diz Renan.

A pesquisa também mostrou que um resultado positivo do teste no primeiro ano de seguimento dos pacientes com fibrose cística implicou em risco médio até 12,5 vezes maior de exposição à bactéria nos pulmões nos dois anos seguintes.

“Como os níveis de IgAs em saliva constituem um potencial marcador de colonização pela bactéria nas vias aéreas superiores, o teste pode ser útil para identificar a presença das bactérias nos seios da face. Uma série de estudos vem sugerindo que os seios da face podem ser o nicho inicial de colonização por Pseudomonas. Isso pode abrir uma janela de oportunidade para detecção e tratamento precoce antes da bactéria ser aspirada para os pulmões, onde ela causa a infecção persistente. Porém, essa habilidade do teste ainda precisa ser confirmada em estudos futuros”, revela Renan, que publicou, ainda, três artigos resultantes da pesquisa nos periódicos Journal of Cystic Fibrosis e Pathogens And Disease.

O poder das inalações com bicarbonato de sódio

O gene CFTR é responsável pela produção da proteína que regula a secreção de íons cloreto (Cl-) e bicarbonato (HCO3-) na membrana localizada na superfície das células. Uma vez defeituosa, a proteína desequilibra a quantidade de sal e água no interior e exterior das células.

A ausência ou deficiência da proteína CFTR, também denominada de canal de cloreto, gera um transporte de íons de cloreto inadequado. Isso acarreta diversas alterações intracelulares que causam numerosos sintomas crônicos em vários órgãos. O defeito genético no gene e na proteína CFTR causa a inflamação e a infecção das vias áreas dos pacientes com fibrose cística.

“A falha no transporte de bicarbonato favorece o aumento de bactérias, a formação de biofilme e a produção de muco espesso, que leva ao declínio da função pulmonar. O tratamento adotado é feito com fluidificação, mobilização e retirada do muco das vias respiratórias”, explica Carla Gomez.

Numerosas estratégias de limpeza das vias aéreas têm sido estudadas e propostas ao longo dos anos. Em sua pesquisa, Carla utilizou a inalação de solução de bicarbonato de sódio para a limpeza das vias aéreas dos pacientes com fibrose cística.

Participaram da pesquisa 19 pacientes maiores de 10 anos de idades atendidos no Laboratório de Fisiologia Pulmonar (LAFIP) do Centro de Investigação em Pediatria (CIPED).

Foto: Scarpa
A fisioterapeuta Carla Cristina Souza Gomez: “A falha no transporte de bicarbonato favorece o aumento de bactérias”

Os pacientes foram orientados a fazer a inalações com bicarbonato de sódio sob supervisão da equipe de saúde do Centro de Referência em Fibrose Cística do HC da Unicamp. As inalações foram feitas por meio de nebulizadores e se iniciaram uma vez ao dia e depois duas vezes ao dia, na primeira dosagem com escalonamento de doses do bicarbonato de sódio.

O projeto foi elaborado com a parceria com Paul Quinton, professor e pesquisador da Universidade da Califórnia, em San Diego. Os estudos de reologia tiveram a colaboração do professor Francisco Benedito Pessine e Karl Jan Clinckspoor, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp.

Os escarros foram coletados em tubos de ensaio e foi procedida a análise de reologia do material colhido. A reologia estuda a resposta de um material mediante a aplicação de uma deformação mecânica na forma de tensão. Essas análises definem a viscoelasticidade do escarro. A análise quantitativa de bactérias foi realizada pela pesquisadora na triagem e na última visita aos pacientes que participaram do estudo.

Carla Gomez também adotou a espirometria e outros métodos para medição da função pulmonar e desfechos clínicos e laboratoriais: aptidão física com teste de degrau, questionário de qualidade de vida e de dispneia, reologia do muco expectorado, avaliação de microrganismos no escarro e análises de eletrólitos no sangue.

“Coletamos a secreção e avaliamos o pH e viscosidade do escarro em todas as etapas da pesquisa. A partir de todos os dados, construímos um gráfico que apontou uma queda na proporção de indivíduos em situação grave e um aumento de indivíduos em situação moderada”, explica Carla.

Segundo a pesquisa, os pacientes não apresentaram alterações respiratórias ou efeitos colaterais. Dados significativos do estudo revelaram diminuição da elasticidade e viscosidade do escarro, aumento do pH das secreções das vias aéreas, melhora na qualidade de vida, melhora na aptidão física pelo aumento do consumo de oxigênio, gasto energético e diminuição de colônias de bactérias nas vias aéreas.

“A inalação de bicarbonato de sódio é bastante segura e melhora a qualidade de vida do paciente. Por isso, a utilização do bicarbonato de sódio, por meio de inalação, pode ser adotada com segurança como um agente terapêutico no manejo da fibrose cística”, diz Carla.

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