Este seria o panorama mais trágico se o Agro colapsasse. Mesmo antes da pandemia do coronavírus, carro-chefe da Economia nacional já escondia dívida de R$ 700 bilhões
Por Rafael Albuquerque
Dor, angústia, medo, revolta e fragilização dos laços familiares são sentimentos por trás da supersafra de 250 milhões de toneladas anunciada aos quatro ventos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
Os números das exportações caminham de vento em popa, impulsionados, especialmente, pela soja, cuja participação será superior a 50%.
Entretanto, o brilho dourado do grão ofusca uma triste realidade compartilhada por milhões de produtores rurais no Brasil, como é caso do produtor Adilson Érida Borges, que possui fazenda no estado do Mato Grosso.
Com uma dívida de R$ 4 milhões, o produtor aguardava mais um recorde de produtividade que não se confirmou e há oito anos briga na justiça para não perder a propriedade para bancos.
Segundo um estudo realizado pela Egrégora Consultoria Empresarial, até janeiro de 2019, o setor devia valor equivalente a uma safra inteira.
“Demonstrativo do Banco Central mostrava uma posição devedora de R$ 306,8 bilhões junto aos bancos nacionais”, aponta o diretor da consultoria, Anisio Carossini, ex-superintendente regional do Banco do Brasil e responsável pela análise.
Somam-se ao montante débitos de R$ 153 bilhões junto às 60 maiores tradings agrícolas, R$ 53 bilhões pendentes com cooperativas e outros R$ 100 bilhões devidos a bancos estrangeiros. Com correções, o montante deve ultrapassar os R$ 700 bilhões.
Situações críticas
Apesar de ver mais chuva neste ano, sete quebras de safra consecutivas no Nordeste, de 2012 a 2018, inviabilizaram a permanência de muita gente na atividade.
Cerca de um milhão de produtores ainda luta para manter posse da propriedade. O presidente da Cooperativa Agropecuária e Industrial de Arapiraca, em Alagoas, Francisco de Souza Irmão, faz duras críticas à Lei 13.340.
Criada em 2016, ela simplesmente, ignorou o grande período de colapso hídrico. “Os produtores estão perdendo suas terras para os bancos”, reclama Chico da Capial, como é mais conhecido no meio.
Tem produtor que financiou R$ 18 mil e já deve R$ 1milhão. No Sul do Brasil, a situação também é trágica. O agro do Rio Grande do Sul registra o terceiro ano de estiagem.
Até agosto espera-se uma frustração de safra em torno de 50%. Não existe uma estimativa de produtores falidos, mas há anos o deputado federal Jerônimo Goergen pleiteava atenção do Mapa sobre a questão da securitização das dúvidas do agro, conseguindo-a apenas na chegada da quarentena.
A última investida foi tentar aprovar a Medida Provisória 936 para garantir R$ 5 bilhões e flexibilização de dívidas.
Mais ao meio do mapa, o Centro Oeste, onde estão os maiores produtores de grãos e gado do Brasil, estão igualmente no vermelho.
Goiás é a ponta do iceberg, responde por 11% do montante total de dívidas: R$ 77 bilhões. São R$ 42,8 bilhões junto aos bancos e R$ 35 bilhões junto a cooperativas e tradings.
Os números são fornecidos por Eurico Velasco, advogado e pecuarista, vice-presidente da Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura (SGPA).
Essa ferida, se não estancada, colocará a economia brasileira em risco daqui cinco anos, pois o Agro representa 21,4% do PIB nacional (R$ 1,5 trilhão), de acordo com dados recentes do Centro de Estudos e Pesquisas Avançadas (CEPEA/USP).
“Imagina o PIB do Brasil sem a contribuição de 21% do Agro”, questiona Jeferson da Rocha, diretor jurídico da Associação Nacional de Defesa dos Agricultores (Andaterra), alertando para um possível êxodo rural de 30% a 40%.
Serão de 1,5 a 2 milhões de famílias migrando do campo para cidades. Pecuária de corte, leite, café, arroz, cana-de-açúcar, citrus, hortifruti, coco e cacau são os setores mais afetados – alguns deles em condições caóticas.
Perda da terra para estrangeiros
A questão do endividamento carrega um problema ainda maior. Conforme execuções avançam, a tendência é de as terras serem adjudicadas pelos credores ou leiloadas.
Com a sanção da Lei do Agro n°13.986 (antiga MP do Agro), comemorada pelo Ministério da Agricultura, os artigos 51 e 52 permitem que estrangeiros sejam os novos donos destas áreas.
Concessão como essa foi vista apenas em 1967, com repasse de áreas da Amazônia para o magnata norte-americano Daniel Keith Ludwig, no projeto Jari.
Outro ponto questionável da Lei do Agro é a blindagem excessiva dos credores. As instituições financeiras poderão expropriar o produtor via cartório, sem necessidade de juiz.
A saída é a securitização
Em 1995, a securitização foi utilizada por força de lei e, hoje, os produtores rurais precisam de um novo fôlego, repactuando dívidas por 25 anos ou mais, com juros de 3%.
“É o mínimo para recuperar encargos ilegais acrescidos, além dos prejuízos gerados pelas manipulações de mercado nos últimos 20 anos”, conclui Rocha.
A política agrícola atual privilegia alguns poucos conglomerados empresariais voltados à exportação enquanto pequenos e médios agropecuaristas são subjugados.
Os pequenos e médios ainda são excluídos das linhas de crédito emergenciais do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES).
Uma forma de levantar recursos sem prejudicar o orçamento da União seria destinar 50% da alíquota do SENAR a um fundo de securitização, após 30 de junho, quando vence o período estabelecido pela MP que reduz pela metade a contribuição obrigatória das empresas ao “Sistema S”.
Raízes do endividamento
A agropecuária é sujeita a seca, chuva, geada ou granizo. Agricultores podem perder a safra do dia para noite.
“O seguro agrícola é caríssimo e concentrado na mão de poucos”, revela o diretor jurídico da Andaterra.
De acordo com ele, o produtor demora até dez anos para se recuperar de uma frustração de safra. É por conta disso que existe a Lei de Crédito Rural (nº 4.829/65).
“O produtor é tratado de forma especial porque produz alimento. Trata-se da segurança alimentar e soberania nacional”, defende Jeferson Rocha.
A título de informação, a agropecuária brasileira alimenta 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo.
Infração à Lei de Crédito Rural
Apesar da legislação vigente limitar taxa de mora a 2,5% e juros máximo de 12% ao ano, além do direito de a dívida por frustração de safra ser prorrogada nos encargos iniciais acordados (MCR 2.6.9), não é o que se vê nos bancos.
“Contratei financiamento com correção de 5,5% ao ano. Tive quebra por 40 dias de estiagem e na renegociação subiram a taxa para 19,5%. Depois disso usaram toda a dívida vencida para tentar elevar para 27% e 33%”, confirma o fazendeiro Antônio Abrão Zardin.
No terceiro ano o principal cliente dele quebrou, dando calote. O produtor tem documentos comprobatórios, entre laudos técnicos de frustração de safra e recusas do seguro Pro-agro. “Em 300 hectares de feijão acumulei uma dívida de R$ 900 mil”, conta.
O produtor condena a arbitrariedade dos bancos. Eles asseguram apenas operações de baixo risco – a soja e o milho das águas – ainda assim a taxas de 8% a 10% e ainda são autorizados a renegociar como bem entendem.
Além de recusar as operações de alto risco, hipotecam as terras, prática proibida na Lei de Crédito Rural, mas autorizada pelo Banco Central, em vez de optar pelo seguro agrícola.
Na prática, as cédulas de crédito rural (CDRs) estão sendo convertidas em cédulas de crédito imobiliário (CCIs). “Quem não se endivida desse jeito”, queixa-se Zardin.
Como saída, o agropecuarista recorre a um financiamento de juros caros para pagar outro de juros baratos, operação apelidada de “mata-mata”.
“Apenas posterga-se a quebra da propriedade, mas a conta deste ciclo sem-fim de refinanciamentos vai chegar. E quem vai pagar é o cidadão brasileiro”, adverte o diretor jurídico da Andaterra.
“Em 27/04/2019 peguei no banco R$ 798.000,00 a taxa de 9,5% a.a. Hoje, devo R$ 1.002.000,00. O custo do dinheiro bate os 27%, fora custeios de projeto e cartório, cerca de 2% extras”, emenda o agricultor José Alípio Fernandes da Silveira, que apresentou todos esses números em reunião no Mapa e nada aconteceu.
O “mata-mata” aleija de um lado e os cartéis industriais espremem a margem do outro, a exemplo de JBS, grandes laticínios e Cutrale. Ficam as dívidas e os traumas.
“Depois de ver preços baixos do nosso produto e as constantes ameaças dos bancos, perdi meus sucessores”, desabafa Zardin.
Jabutis nas leis de crédito agrícola
Um deles é a famigerada alienação fiduciária que as instituições embutiram nas operações de crédito agrícola.
“Alienação fiduciária permite requerer apenas o bem financiado, mas, nas operações agrícolas, os bancos tomam as próprias fazendas como garantia”, explica o agricultor Adilson Borges, que, inclusive, teve um pulverizador arrestado a mão armada por agentes do Banco CNH, em dezembro de 2019.
Segundo ele, ainda existe outro jabuti em relação à reestruturação de dívidas, que só existe para inglês ver.
“Em 2018, recorri a uma circular do BNDES para reestruturar dívida. Seguraram tanto que quando saiu a resolução do Banco Central minhas operações já estavam vencidas, ajuizadas e lançadas em prejuízo. Mesmo comprovando que o pedido foi feito ainda sem prejuízo eu fui excluído”, lamenta Borges.