Bem-intencionado, útil e questionado: os matizes de um diagnóstico em pleno crescimento
Por Kristin Suleng/El País
Milhões de pessoas não têm sua taxa de açúcar como deveria. Costumam ser as mesmas que frequentemente afirmam, sem dar muita importância: “Não tenho diabetes, só um pouco de açúcar”. Certo, não são diabéticas, mas seus níveis de glicose no sangue denunciam a seus médicos que algo não vai totalmente bem. Há 20 anos nasceu para essas pessoas um novo conceito: a pré-diabetes, um termo criado para que médicos e pacientes levem a sério o aumento do açúcar e freiem o surgimento de uma diabetes tipo 2. Entretanto, o rótulo se recusa a se popularizar, e ao mesmo tempo é questionado por vozes especialistas.
Essas posturas críticas são citadas na revista Science em um recente artigo que avalia a pré-diabete como uma condição que se soma à debatida medicalização, com um elevado custo em campanhas e tratamentos sem respaldo de provas científicas. Criada pela Associação Americana da Diabete (ADA), a pré-diabete foi proposta como alternativa ao conceito histórico, e muito mais difundido, de glicemia alterada em jejum. O propósito da mudança é responder ao grave aumento da obesidade e diabete em escala planetária, atendendo a sinais prematuros. Um dos primeiros trabalhos a apontar o diagnóstico precoce de diabetes foram os de Enrique Caballero, da Escola de Medicina de Harvard, cujos resultados indicavam que entre 5 e 10% das pessoas pré-diabéticas acabam sofrendo diabete no ano seguinte, e em torno do 50% ao cabo de dez anos. Esses dados motivaram os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos a declararem guerra à pré-diabete, entendida como o caminho para acabar com a diabete, uma doença que pode resultar em amputações, cegueira e ataque cardíaco.
Uma prevenção discutida
Como quase tudo na medicina preventiva, a pré-diabete não se salva do debate, e muitos cientistas questionam a necessidade de identificar e tratar a pré-diabete conforme definida pela ADA, entidade que entre 2004 e 2010 alterou o índice de referência de açúcar no sangue considerado como pré-diabético para 100-126 mg/dl, em vez da margem clássica 110-140 mg/dl, criando com uma canetada dezenas de milhões de pacientes potenciais nos Estados Unidos. “É polêmico porque abrange mais pessoas sem um risco suficientemente elevado de diabetes”, destaca Javier García Soidán, membro do patronato da Fundação Rede de Grupos de Estudo da Diabetes em Atenção Primária da Saúde (redGDPS) da Espanha.
Com os anos, outros estudos científicos, como a revisão de 2018 da Cochcrane Collaboration, que mostrou que 59% dos pacientes pré-diabéticos voltaram aos valores glicêmicos normais numa margem de 1 a 11 anos sem tratamento, vieram a questionar a necessidade do diagnóstico pré-diabético, o que leva não poucos especialistas a verem na pré-diabete uma medida alarmista, sem benefícios claros do diagnóstico.
Embora o consenso médico apoie a dieta saudável e o exercício físico regular para manter o açúcar sob controle, e seja amplamente aceito que níveis algo elevados de glicose podem evoluir para a diabete, a divergência aparece em questões fundamentais. Por exemplo, com que frequência e rapidez as pessoas pré-diabéticas progridem para diabéticas, e até que ponto a pré-diabete é nociva quando os níveis de um paciente estão no extremo inferior do espectro. De fato, os CDC, que em princípio defendiam que entre 15% e 30% dos pacientes com pré-diabete não tratada desenvolvem diabetes em um prazo de cinco anos, reduziram a caracterização do risco a menos de 2% no prazo de um ano, e menos de 10% em cinco anos.
Um problema reversível
“A sociedade não conhece a pré-diabete nem a diabete. Embora se estime que 6 milhões de pessoas sejam diabéticas na Espanha, 1,5 milhão não sabem disso. A pré-diabete serve para localizar as pessoas que a têm. O fundamental é entender que a pré-diabete pode ser revertida, mas a diabete não”, explica Andoni Lorenzo, presidente da Federação Espanhola de Diabete (FEDE), que avalia a pré-diabete como uma oportunidade de conscientizar a população para os dados “terríveis” da diabete na Espanha: 25.000 pessoas morrem por ano em decorrência da doença, ou 68 por dia.
Para Lorenzo, não é alarmista antecipar-se à doença cortando os níveis, levando-se em conta que são diagnosticados 1.100 casos de diabete por dia. “É uma forma de mudar a visão e a metodologia do diagnóstico e a prevenção. Na rua a doença ainda é banalizada, embora lideremos as amputações relacionadas com a diabetes na Europa, e o gasto sanitário supere o do Ministério de Defesa”, observa o presidente da FEDE.
Uma leitura semelhante é compartilhada pelo endocrinologista Alfonso López Alba, responsável por comunicação da Sociedade Espanhola de Diabetes (SEDE): “A pré-diabete não implica transformar pessoas sãs em pacientes, mas sim indica estratégias para melhorar a educação terapêutica. Porém faltam medidas como a especialização de enfermaria e de outros âmbitos, como cirurgia, psiquiatria e ginecologia. A diabete é a doença que melhor podemos tratar desde o começo, nenhuma outra pode retomar melhor as rédeas de nossa genética por mudar nosso estilo de vida, e isso é algo para levar em conta quando sabemos que a diabete triplica o custo sanitário médio”, salienta esse especialista.
O benefício a um custo razoável
Na Espanha, o estudo PREDAPS, que durante cinco anos avaliou a pré-diabete, situa o corte de nível de glicose que melhor prediz o desenvolvimento de diabetes em 110 mg/dl, como também defende a Organização Mundial da Saúde (OMS). “A faixa entre 110 e 140 de glicose tem um benefício grande a um custo razoável, mas reduzi-lo a 100 faz que o custo dispare com um risco bastante baixo. Na Espanha, não é efetivo”, sentencia García Soidán, coautor do estudo.
Além da glicemia basal em jejum, o diagnóstico mais utilizado, outros métodos para avaliar a pré-diabete são a sobrecarga de glicose, sobretudo em mulheres grávidas — um consumo e 75 a 100 gramas de glicose em jejum, cujo nível é medido ao cabo de uma ou duas horas — e a hemoglobina glicosilada, um diagnóstico baseado em avaliar os glóbulos vermelhos a cada três meses, que se incorporou com força nos últimos anos, e que estabelece a pré-diabete quando o nível supera 5,7%. “Comprovamos que entre 5,7% e 6% o risco é muito baixo. Para que seja efetivo, deve estar acima de 6%”, aponta esse clínico geral.
Não só a diabete está em jogo
O risco da pré-diabete não se limita a desenvolver diabete. Verificou-se que entre 70 e 80% das pessoas pré-diabéticas padecem de síndrome metabólica com um prognóstico ruim em longo prazo, e também se associa ao sobrepeso e obesidade entre 80% e 90% dos afetados. “Na Espanha, pessoas com glicemia entre 110 e 126 mg/dl são consideradas população de alto risco, e com a hemoglobina glicosilada entre 6%-6,5%, e as que têm ambas as coisas alteradas têm um risco enorme”, descreve García Soidán.
Apesar dos riscos, a desconfiança que paira sobre a diabetes se relaciona com a possível criação de novos pacientes para o negócio farmacêutico, algo pouco fundamentado, segundo García Soidán, que recorda que a metaformina, indicada para a diabete, pode reduzir o risco de desenvolver pré-diabete, segundo a Federação Internacional da Diabete, em pessoas com problemas de peso, menores de 60 anos, mas que não seguiam as orientações de estilo de vida, embora não seja receitada pelas autoridades sanitárias às pessoas pré-diabéticas por falta de provas sobre sua eficácia. “Há medicamentos para a diabete ou a obesidade que podem funcionar, mas o benefício maior é a alimentação e o exercício, que reduz o risco em até 60%. O importante aqui é a prevenção pelos hábitos, mais que por medicamentos”, conclui o clínico.
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