Um filho só não tem a menor graça. Cresce aquela criatura sozinha e isolada do mundo sem saber se defender de nada nem de ninguém. Dois são um perigo. Quando se juntam, não há ninguém para trazer o bom senso. Um concorda com o outro e, aí, a lambança está feita. O mesmo quando são quatro. Ficam duas duplas e o bom senso falta. Agora, com três, há equilíbrio.
Lá em casa sempre foi assim. Quando uma tinha ideia de jerico e conseguia convencer a outra, a terceira que por algum motivo tinha ficado de fora do “plano” vinha como a voz da razão.
Algumas vezes, até eu virava a dona da razão! As duas se juntavam para querer conquistar o mundo todo em um dia e eu tinha que vir dizendo que não. Precisava ao menos uma semana inteira para um plano tão audacioso.
Claro que, às vezes, a voz da razão falava baixo, muito baixo.
Lembro muito bem quando isso aconteceu e eu e minha irmã mais velha comemos um pudim inteiro.
Teríamos visita para o jantar e mais ou menos às seis da tarde minha mãe já estava com tudo pronto.
Até a mesa estava posta.
Foi quando sentimos o perfume do pudim de leite saindo do forno.
O pudim de leite da minha mãe é o mais escandaloso de todos. Quando ele é tirado do forno, sai gritando para o mundo inteiro: “eu sou gostoso, eu sou gostoso!”
E esse gritava muito, muito alto. E, na hora de maior gritaria, minha mãe falou lá da sala que precisava ir ao mercadinho da esquina comprar xampu.
Quando eu ouvi o barulho da porta sendo fechada e os passos dela se afastando, tive a brilhante ideia: calar o pudim que gritava.
Tive a ideia e fui atrás da minha cumplice preferida: minha irmã mais nova. Ela, tadinha, sempre embarcava nas minhas maluquices.
Não naquele dia:
“Aninha, é o chefe do papai que vem para o jantar, se a gente comer mamãe não vai ter sobremesa pra servir para o moço.”
“Mas Rebeca, é só um pedacinho. A gente tira um pedaço e divide.”
“Não Aninha, não vou te entrar nessa.”
Falou, virou as costas e saiu.
Eu fiquei muito, muito chateada e fui atrás da Beatriz.
Essa, por ser mais velha, tinha mais juízo e sempre cortava o meu barato. Mas, nesse dia, miraculosamente, topou na hora minha ideia.
A bichinha, judiação, sempre foi louca por doces.
Nós ficamos em pé ao lado do pudim e fomos comendo.
Começamos discretamente, pedacinhos pequenos, mas estava tão gostoso. Um gosto que eu nunca tinha sentido antes e acredito que nunca mais vou comer algo tão gostoso. Cada uma com uma colher, comendo como se não houvesse amanhã.
Foi nessa hora, quando eu já tinha me esquecido de que iria comer só um pedacinho, que olhei para a porta da cozinha e vi a Rebeca.
Ela era pequenininha e estava encostada na porta com os braços cruzados nos olhando e balançando a cabeça:
“Mamãe vai matar vocês.”
Foi quando eu me assustei: nós havíamos comido tudo, tinham só duas colheradas.
Quando me dei conta disso levei o maior dos sustos. O susto foi tão grande que só me dei conta de que minha mãe tinha chegado quando ela já estava ao meu lado.
Até hoje, me pergunto de onde ela tirou tanta serenidade.
Estávamos as duas de colheres em punho e as bocas completamente lambuzadas.
Com a voz mais baixa e pausada do mundo, o que era característico de quando ela estava nervosa, ela disparou a pergunta fatal:
“De quem foi a ideia?”
Sem nem pensar e ainda com a boca cheia, minha irmã mais velha que havia sido minha comparsa, respondeu:
“Foi da Aninha.”
Mas minha mãe não deixou barato:
“A ideia foi dela, mas você participou ativamente.”
Ela estava em silêncio quando encontrou a pequenininha parada à porta:
“Você comeu, Rebeca?”
“Comi não, mãe.”
Mamãe deu um sorrisinho como quem diz: ao menos uma se salva nessa casa.
Ela pegou a bolsa e saiu, sem falar uma só palavra.
Quando voltou tinha nas mãos a mais linda torta de sorvete que eu já tinha visto na vida.
Mandou-nos tomar banho, separou vestidinhos de igreja para cada uma de nós e não disse uma só palavra sobre o acontecido.
Quando já estávamos todos prontos, só esperando as visitas, ela sentenciou nossa sorte:
“Ana e Beatriz, obviamente vocês hoje não irão comer sobremesa após o jantar e, como complemento a esse castigo tão brando, ficarão dois meses proibidas de comer qualquer doce, nem mesmo uma só balinha.”
Quando eu ouvi isso, meu mundo desabou, mas eu fiz de conta que estava tudo bem.
Rebeca passou dois meses comendo sozinha todas as sobremesas mais deliciosas do mundo. Afinal, todo dia, tínhamos doce especial lá em casa e eu aprendi para sempre a não comer doce quente!
Vivi Antunes é ajuntadora de letrinhas e assim o faz às segundas, quartas e sextas no www.viviantunes.com.br