“Fomos esquecidos por séculos”, diz moradora de comunidade
Por: Léo Rodrigues/Agência Brasil
Em meio a uma densa área de Mata Atlântica, a garoa fina forma uma névoa. A temperatura é consideravelmente mais baixa do que nos bairros edificados do Rio de Janeiro. Ao redor de uma farta mesa de café da manhã enriquecida com produtos locais, as pessoas vão se aproximando. A equipe de recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inicia as primeiras entrevistas de uma jornada que iria até o meio da tarde.
No almoço, foi servida feijoada completa. Ao fim dos trabalhos, emocionada e com a voz embargada, Eulália Ferreira da Silva leu um texto com agradecimentos e homenagens.
Não era um dia qualquer. A visita inédita da equipe do IBGE foi vista como um momento histórico pelos moradores da comunidade quilombola da Pedra Bonita. A reportagem da Agência Brasil, que havia pedido autorização para acompanhar os trabalhos, também foi surpreendida com uma homenagem. Os quilombolas entregaram uma placa na qual agradeceram “pelo nobre trabalho de documentar a realização do primeiro recenseamento da história destas famílias, levando o conhecimento histórico que vincula a memória jornalística e a memória nacional”.
“Nos dados e registros oficiais, nós não existíamos em mais de 150 anos. Por isso, é uma data tão importante e histórica. Estamos sendo reconhecidos como cidadãos brasileiros”, disse Eulália, de 61 anos. “Fomos esquecidos por séculos. Não podem nos tornar invisíveis e esconder uma história que é notória e que a gente tem registro em fotos e documentos antigos.”
A Comunidade Quilombola da Pedra Bonita está encravada em um dos quatro setores do Parque Nacional da Tijuca. Próximo dali, fica a rampa de voo livre, de onde turistas e adeptos de esportes radicais saltam de asa delta ou de parapente para apreciar uma visão única da capital fluminense antes de aterrissar na Praia de São Conrado. Embora esteja territorialmente dentro do Rio de Janeiro, a comunidade nunca havia recebido a visita de recenseadores.
O Brasil costuma realizar o Censo Demográfico de dez em dez anos. É a única pesquisa domiciliar que vai a todos os 5.570 municípios do país. O objetivo é oferecer um retrato da população e das condições domiciliares no país. As informações obtidas subsidiam a elaboração de políticas públicas e decisões relacionadas com a alocação de recursos financeiros. O censo, que deveria ter sido realizado em 2020, foi adiado duas vezes: primeiro, causa da pandemia de covid-19 e depois por dificuldades orçamentárias.
A operação censitária começou em junho deste ano. Os trabalhos, inicialmente com previsão de conclusão agora em outubro, estão atrasados: com 49% da população coberta, o IBGE agora estima que o censo se estenda até o início de dezembro.
A previsão é visitar 5.972 localidades quilombolas. É a primeira vez que esta população está sendo consultada. Na edição de 2010, o IBGE incluiu o registro de etnias indígenas.
Em todo o estado do Rio de Janeiro, 60 comunidades quilombolas devem receber os recenseadores. Há uma preparação específica para essa tarefa, diz Isabela Nery Lima, economista e analista censitária do IBGE que está encarregada da coordenação de coleta de informações dos povos tradicionais.
“Precisamos fazer tudo isso da forma menos invasiva possível. E por isso buscamos os líderes. Eles atuam como parceiros que ajudam a abrir as portas e também nos guiam pelo território para podermos entrevistar todos os moradores.” Isabela ressalta que é preciso respeitar a temporalidade dessas comunidades, o que, muitas vezes, exige mais de uma visita. Ela aponta outros empecilhos, como a ausência de moradores na hora da entrevista e a impossibilidade de contatá-los ou a dificuldade para marcar no sistema as moradias situadas em locais onde o sinal de GPS é ruim.
Para Isabela, a inclusão dos quilombolas no Censo Demográfico dá ao Brasil a oportunidade de conhecer sua própria diversidade, permitindo o melhor planejamento territorial e a criação de novas políticas públicas. Os dados coletados também subsidiam a elaboração de material didático, inclusive do próprio IBGE por meio do projeto IBGE Educa. “É o reconhecimento de pessoas que precisam fazer parte dos processos sociais, do processo político. É, na verdade, até uma forma de combater o apagamento histórico”, afirma a economista. Para ela, as informações coletadas ajudam a revelar as peculiaridades das comunidades e dinâmicas específicas de formação.
História
A história da comunidade quilombola da Pedra Bonita é um exemplo. Ali começaram a se reunir, a partir da década de 1860, não apenas ex-escravos negros, mas também indígenas e imigrantes portugueses pobres que aderiram à causa abolicionista. Ocupando três sítios, essas pessoas sustentavam-se com produção de hortaliças e frutas e com o cultivo de flores ornamentais. Estima-se que há mais de 2 mil árvores de camélia, flor que foi adotada como símbolo da Confederação Abolicionista, organização política que surgiu no Rio de Janeiro em 1883 e lutou pelo fim da escravidão.
Descendente de ex-escravos e de indígenas, Jose Emílio Cordeiro, de 53 anos, é hoje o presidente da Associação da População Tradicional e Quilombola da Pedra Bonita (Aquibonita), fundada pelos moradores da comunidade. Ele conta que seus primeiros parentes, assim como outras famílias, chegaram ao local quando o governo promoveu o reflorestamento da área entre 1860 e 1890.
“Muitos vieram trabalhar quase obrigados. Aqui era um local onde eles se escondiam porque todos, de uma certa forma, eram discriminados. E formaram essa comunidade que defende a floresta. Somos preservadores por natureza, não é por modismo. É a nossa origem. Cada plantinha, cada árvore aqui para nós tem a mão dos nossos ancestrais e tem um significado enorme.”
Jose Emílio destaca os desafios de quem mora no meio da floresta. Uma das dificuldades é o acesso restrito à energia elétrica, o que impede as famílias de ter, por exemplo, uma geladeira. Segundo ele, também é difícil o acesso a serviços públicos de saúde e educação. Durante a pandemia de covid-19, a vacinação de quilombolas foi considerada prioridade pelo Plano Nacional de Imunização (PNI), mas nenhum agente esteve na comunidade da Pedra Bonita, e os moradores precisaram se deslocar até os postos mais próximos nos bairros do Alto da Boa Vista e de São Conrado e foram atendidos conforme o calendário da população em geral.
Da mesma forma, as crianças têm dificuldade para chegar à escola, apesar de ter havido melhorias ao longo do tempo. “Eu levava uma hora e meia andando a pé porque não tinha condução. Hoje até tem, mas é muito precária. Também já tem estrada, que não tinha até 20 anos atrás. Algumas famílias têm carro, mas não são todas”, diz Jose Emílio.
Em meio à pandemia de covid-19, com a adoção do ensino remoto, as dificuldades aumentaram. Guilherme, filho de Jose Emílio, conta que ia para partes mais altas da Pedra Bonita em busca de sinal de internet para conseguir acesso às aulas pelo celular.
Luta
O Parque Nacional da Tijuca foi criado em 1961 sem que a regularização fundiária da área ocupada pelas famílias. A comunidade chegou a ser ameaçada de despejo em diferentes momentos e, somente em junho do ano passado, foi reconhecida como remanescente quilombola, recebendo o certificado da Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cidadania. O processo de titulação da terra tramita no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Eulália Ferreira, que viveu sempre ali, é uma guardiã da história oral da comunidade e conta como seu avô, que veio de Portugal, foi acolhido na área.
“Não tinha dinheiro, estava buscando uma vida nova e um parente dele que já estava aqui. A gente acredita que ele veio na época da Primeira Guerra Mundial. Talvez tenha vindo antes. Tem uma casa que a gente chama de Casa Grande e que hoje está em ruínas. Era o primeiro ponto de apoio para todo mundo que vinha aqui para Pedra Bonita. Ele morou lá, foi um homem sozinho por um tempo porque ainda não tinha dinheiro para trazer a vovó de Portugal”, lembra.
Segundo Eulália, uma regra adotada pelos moradores era que todos deveriam ser trabalhadores produtivos. No passado, além da floricultura, as famílias se sustentavam com a carvoaria e a criação de animais, o que foi posteriormente proibido pelo poder público com o argumento da preservação ambiental. Ainda há resquícios dos balões de carvão. De acordo com Jose Emílio, medidas tomadas tornaram a existência da comunidade praticamente inviável. A falta de gado, por exemplo, afetava inclusive a produção agrícola já que não havia adubo.
“Muitos foram embora. Então, é uma luta constante para defender uma área cobiçada. Resistimos porque tem, para nós, valor emocional. Mas as pessoas querem tirar dinheiro daqui. Já houve, por exemplo, discussões para fazer um hotel aqui. E alguns ambientalistas são influenciados. Sabemos disso. Então, nos tornamos os guardiões disso aqui”. Ele lamenta inclusive episódios envolvendo agentes ambientais e critica a destruição de parte de uma trilha de pedras construída pelos primeiros moradores.
“É o próprio Estado agindo contra quem está no lugar e apagando a história. Lógico que os órgãos públicos são todos muito valiosos, e a gente precisa de todos aqui. Estamos muito felizes com a vinda do IBGE. mas também sabemos que as gestões mudam e há sempre influências externas nem sempre interessadas na preservação. Já teve administração do Parque Nacional que nos deu diploma e reconhecia nosso papel de guardião da floresta, mas também já teve gestor dizendo por aí que somos invasores. Sem dúvida, esse meio ambiente preservado se deve às nossas famílias. A gente sabe que tem leis que nos protegem, mas infelizmente precisamos lutar para aplicar e proteger a lei”, acrescenta.
Foi sobretudo pelo comércio da flor de camélia que muitas famílias conseguiram se manter ao longo do tempo. Vendiam nos cemitérios ou para comerciantes. Mais tarde, passaram a ser usadas na decoração de festas de casamento e hoje são bastante requisitadas. Além das cameleiras, muitas centenárias, também são exploradas comercialmente outras plantas ornamentais como a flor da pitanga, a areca e a dracena.
Os moradores da Comunidade da Pedra Bonita têm ainda uma produção agrícola diversificada que engloba, por exemplo, caqui, laranja e banana, além de hortaliças.
O turismo também gera alguma renda. Em alguns dias da semana, um café da manhã é preparado para montanhistas. Há também uma vendinha no local.
“A trilha da Pedra Bonita existe desde o Império e sempre foi respeitada pelos moradores. O visitante que vem é muito bem acolhido. É uma tradição familiar. A vovó já fazia broa no forno de pedra e servia café para os montanhistas”, conta Eulália.
Valor sentimental
Na comunidade quilombola da Pedra Bonita vivem cerca de 50 pessoas em 20 residências, algumas das quais consideravelmente degradadas. Segundo os moradores, agentes de fiscalização ambiental têm impedido reformas. Há ainda pessoas que, embora tenham se mudado e não residam mais na comunidade, mantêm os vínculos e também poderão ser recenseados como quilombolas.
“As pessoas não perdem a identidade porque saíram do território. Os quilombolas sofrem várias pressões políticas, sociais e econômicas que influenciam os deslocamentos. Então precisamos compreender que os quilombolas são plurais na sua organização e no encaminhamento de suas vidas”, diz Diego da Silva Grava, coordenador censitário do IBGE na área que engloba os bairros Lagoa, Jardim Botânico, Leblon e São Conrado, nos quais existem três comunidades quilombolas, incluindo a da Pedra Bonita.
Jose Emilio diz que o vínculo com a comunidade se reforça pelo valor sentimental e que os dados coletados pelo censo poderão ajudar a entendê-lo. “É uma vitória para todos os quilombos, mas, especificamente para nós, é uma grande vitória tendo em vista as ameaças externas que sofremos. Precisamos da ajuda do poder público. E o IBGE nos ajuda a mostrar essa terra, não pelo seu valor comercial, mas pelo valor sentimental. É a história dos nossos ancestrais e a história de toda essa vegetação.”
Para ele, a existência da comunidade tem sido “invisibilizada”. Ele manifesta incômodo com a ação de alguns guias turísticos que vendem trilhas que passam pelos caminhos de pedra construídos pelos seus ancestrais. “São muito bem acolhidos, mas eles informam nos sites que são trilhas que eram usadas por antigos moradores para levar benfeitorias até as feiras livres e os armazéns. Eles usam a nossa história para ganhar dinheiro e não dizem que nós estamos vivos. Eu andei muito de burrico nessas trilhas com meu pai. A estrada só foi construída em 1972″, recorda.
“As pessoas não perdem a identidade porque saíram do território. Os quilombolas sofrem várias pressões políticas, sociais e econômicas que influenciam os deslocamentos. Então precisamos compreender que os quilombolas são plurais na sua organização e no encaminhamento de suas vidas”, diz Diego da Silva Grava, coordenador censitário do IBGE na área que engloba os bairros Lagoa, Jardim Botânico, Leblon e São Conrado, nos quais existem três comunidades quilombolas, incluindo a da Pedra Bonita.