No Brasil, temos presenciado uma preocupantes relativização da relação de confiança estabelecida entre médicos e pacientes
por VIGNA
A violação do dever de sigilo profissional por parte dos profissionais de saúde tem se tornado uma prática preocupante, na qual mulheres que se submeteram a procedimentos abortivos são denunciadas, resultando na abertura de processos criminais contra elas.
Um exemplo chocante dessa violação ocorreu com uma jovem de 21 anos em situação de vulnerabilidade social. Durante seu atendimento em uma Santa Casa, a paciente foi surpreendida com a chegada de policiais, que a algemaram enquanto ainda estava em uma maca. A razão para essa abordagem policial foi o diagnóstico do médico de que ela havia realizado um procedimento abortivo. Nesse caso, os próprios policiais informaram que receberam a denúncia do médico em questão.
Infelizmente, situações como essa não são excepcionais e são mais comuns do que se imagina. Um estudo conduzido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) analisou 43 processos criminais envolvendo mulheres acusadas de praticar aborto. Os resultados revelaram que pelo menos 44% desses casos foram notificados à polícia por profissionais de saúde, e em 65% deles houve compartilhamento dos prontuários médicos sem autorização.
Além disso, foi constatado um perfil recorrente entre essas mulheres: geralmente são pessoas de baixa renda, com pouca instrução e que residem em regiões periféricas. No entanto, é importante destacar que esse perfil não corresponde necessariamente às mulheres que realizam abortos, mas sim às mulheres que são efetivamente presas por terem cometido tal ato.
Apesar das estatísticas alarmantes, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, no julgamento do Habeas Corpus nº 783.927/MG, que os médicos estão proibidos de acionar a polícia para informar sobre pacientes que buscam atendimento médico-hospitalar devido à prática de aborto. O ministro Sebastião Reis Júnior fundamentou essa impossibilidade no fato de que o médico age como um “confidente necessário”, sendo vedada a revelação de segredos aos quais teve acesso em virtude de sua profissão, bem como prestar depoimento como testemunha sobre esse fato.
É válido ressaltar que a falta de confiança estabelecida entre médico e paciente acarreta diversos prejuízos, não apenas em relação à violação dos direitos das pacientes, mas também na proteção da saúde das mulheres.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também já se posicionou no mesmo sentido, em que o desembargador Amable L. Soto destacou que “essas mulheres, temerosas de serem processadas criminalmente, deixariam de buscar tratamento médico, o que aumentaria consideravelmente o risco de agravamento de suas condições de saúde” (Recurso em Sentido Estrito nº 1000288-78.2008.8.26.0606, publicado em 28.09.2022).
Na legislação, também há obstáculos à denúncia por parte dos profissionais de saúde em relação a pacientes que tenham realizado manobras abortivas. O Código de Ética Médica estabelece claramente que é proibido ao médico revelar fatos dos quais tenha conhecimento em decorrência do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do paciente. O parágrafo único desse artigo estipula que essa proibição persiste mesmo na investigação de suspeita de crime, o que impede o médico de revelar segredos que possam expor o paciente a um processo penal.
Diante disso, com base na legislação e na jurisprudência, é evidente que a denúncia realizada por um médico em relação a um suposto aborto praticado por uma paciente sob seus cuidados é ilegal, o que inviabiliza o uso desse tipo de prova no âmbito do processo penal.
Conclui-se, portanto, que é ilegal instaurar procedimentos criminais contra mulheres que realizaram aborto quando a denúncia parte de um médico que as atendeu. Decisões como as proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo são pilares fundamentais para a construção de uma jurisprudência sólida em casos semelhantes, a fim de evitar acusações ilegais, preservando os princípios constitucionais e os direitos à vida e à saúde das mulheres.