Por: Ascom MPT Bahia
A história de Valdeci de Jesus, 48 anos, nascida em Feira de Santana, interior da Bahia, é um exemplo dos males causados pelo trabalho escravo e reforça a importância de discutir o tema neste 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A vida dela começa como a de tantas outras mulheres que precisam trabalhar desde muito novas, com o ingresso na vida laboral pelo trabalho infantil. Com 15 anos, uma prima de Valdeci a levou para trabalhar com sua antiga patroa, para quem trabalhou por mais de 30 anos como cuidadora, em situação semelhante à escravidão. Ano passado foi resgatada e hoje vive um recomeço cheio de esperança.
“O trabalho escravo doméstico vem surgindo como realidade nos números muito recentemente, embora seja de conhecimento geral que ele existe há muito tempo. Não fazíamos fiscalização em residências por uma série de entraves legais, mas, desde o início da pandemia, tivemos um grande volume de denúncias e alguns resgates em Salvador e outras cidades do estado. Esse é um novo perfil do trabalho escravo, urbano e majoritariamente exercido por mulheres”, relata a procuradora Manuela Gedeon, coordenadora de combate ao Trabalho Escravo do MPT na Bahia.
Valdeci trabalhava todos os dias da semana, 24 horas por dia; estava sempre disponível. Ela fazia de tudo e não teve tempo para aprender a ler, aprender matemática, ou mesmo brincar como outras meninas de sua idade. Se quisesse dinheiro, deveria pedir à patroa, pois não recebia pelo seu trabalho. Só aos 22 anos se deu conta que vivia uma situação abusiva de trabalho escravo. “Eu era criança na época, né? Era menina. Você sabe que criança não sabe das coisas direito. Foi uma vida que eu passei com elas”, conta.
Valdeci é uma mulher gentil e alegre. Passou a maior parte de sua vida em uma situação análoga à de escravo, mas foi resgatada em 2021. Apesar disso, sua vontade e, sobretudo, esperança de melhorar de vida, permaneceu. Depois do resgate, tem aprendido a ler e a contar, “Para não ser mais enganada”, diz. E ela alerta, “qualquer coisa tem que dar queixa, não pode ficar parada, não. Trabalhar sem receber seus direitos é como não trabalhar”.
O caso da cuidadora ajuda a engrossar as estatísticas do trabalho análogo ao de escravos no Brasil, ainda persistente 134 anos após a assinatura da Lei Áurea. A Bahia ocupa a sexta posição em número de pessoas resgatadas do trabalho escravo no Brasil, com 3.378 pessoas retiradas dessa situação entre 1995 e 2020, segundo levantamento realizado pela plataforma Smartlab, uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Trabalho escravo contemporâneo, ou trabalho análogo ao de escravo, pode ser definido como o cerceamento de liberdade do trabalhador, ou quando o trabalhador sofre com condições degradantes de trabalho, ou quando está em jornada exaustiva, ou está em situação de servidão por dívida. Pode, também, ser a soma disso tudo. Na Bahia, o combate a essa prática é realizado sempre em rede, por meio da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, com participação efetiva do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho do Governo Federal, Secretaria de Justiça Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Governo do Estado, Polícia Rodoviária Federal, dentre outras instituições
À definição de trabalho análogo ao de escravos, presente no artigo 149 do Código Penal, pode-se acrescentar que significa também, muitas vezes, a interrupção do sonho de melhorar de vida, de crescer, de estudar, ter lazer, de constituir uma família, enfim, de viver uma vida digna, a que todo ser humano tem direito, onde você recebe, de modo justo, pelo suor de seu trabalho e faz suas próprias escolhas.
Valdeci é um exemplo de como o cerceamento de direitos elementares pelas condições de trabalho a ela impostas retira a dignidade humana. Ela lembra que só começou a poder sair sozinha de casa quando se tornou maior de idade. Antes disso, somente acompanhada. Também não recebia muitas visitas de seus parentes. O irmão a visitou apenas duas vezes, quando morava em Amargosa. Durante o tempo na casa da sua antiga patroa, pôde ver muitas mulheres que trabalharam lá e que viveram uma situação semelhante à dela. “Quando eu comecei a trabalhar lá, muita gente passou por lá também. Muitas saíram sem nada”, afirma.
Valdeci não aceitava sair daquele trabalho da mesma maneira, o que a aprisionou ainda mais. Chegou a falar para as outras trabalhadoras que não deixaria o trabalho daquele jeito. “Eu falei para elas. Eu não vou sair, não. Não vou sair com uma mão atrás e outra abanando. Eu vou botar elas na justiça”, narra. Foi ficando, ficando, até que uma ação fiscal da Coetrae a libertou e ela passou a contar com apoio para reestruturar sua vida.
Agora, almeja fazer um curso de cuidadora de idosos e seguir a vida com mais leveza e dignidade. Valdeci mostra a importância da denúncia do trabalho escravo às autoridades competentes para que se tente retomar tudo aquilo que lhe foi tomado e para que pessoas que cometem o crime de submeter trabalhadores a uma situação tão degradante respondam judicialmente por essa ilegalidade trabalhista e por esse crime, também previsto do Código Penal.