Por Antônio Novais Torres
Negro, nascido em ambiente desestruturado, de promiscuidade, mãe analfabeta e alcoólatra com sequelas mentais, viveu a infância na pobreza e na mendicância. Pasou por momentos difíceis e bastante tumultuado, sem orientação e sem freios. Esses dilemas da infância, como falta de educação e de orientação social da família, de responsabilidades, são violências da vida de pobreza que evidenciam o aspecto cruel da sociedade.
Encontrou, porém, um anjo bom que lhe deu oportunidade de estudar em escola particular e o encaminhou para uma vida comprometida com os valores éticos, morais e sociais conceituados pela instrução. Cuidou para uma recuperação individual através do aprendizado da educação para o exercício da cidadania.
É verdade que o meio familiar em que viveu na infância tinha conotações educacionais diferentes das dos colegas da escola particular que frequentou, porém contou com a orientação e aceitação da proprietária da escola, pelo afeto e estima à sua pessoa, contou também com a solidariedade dos professores e colegas de classe que o acataram sem discriminação ou humilhação, por ser pobre e preto.
Apesar dos percalços sociais que enfrentou, foi um lutador e vencedor. Não se entregou às mazelas sociais, distanciando-se da violência das ruas, pela vontade de ser alguém útil na vida.
Tinha obsessão por frequentar o seminário católico e tornar-se padre, mas, por não preencher os requisitos exigidos pela Igreja, teve o seu desejo de tornar-se um eclesiástico cerceado, o que o frustrou profundamente. Protestou, alegando discriminação religiosa e o preconceito pela sua cor, assim entendeu.
Ainda pequeno, na creche, enfrentou, pela primeira vez, o racismo por parte da professora que o preteriu em favor de um branco. A revolta o levou a beber água sanitária e lavar-se com ela, na intenção de tornar-se branco. Com dificuldade, a mãe contou com a ajuda de um médico para conseguir uma ambulância e levá-lo para um hospital em cidade vizinha com melhores recursos médicos.
No afã de ter alguém da cor branca, como mãe, ou que pudesse chamar de mãe, pediu a uma senhora de cor branca, bem-sucedida na sociedade, que o adotasse, porém ela encarou o pedido como eventual desequilíbrio emocional. As pretensões e esperanças do menino revoltado e preconceituoso o desapontou pela sua condição de negro. Esse gesto traduz a sua condição psicológica e social com relação ao assunto. O ser humano precisa aceitar-se, é aquilo que ele faz ou pratica, encarar a realidade, ser o que é pela condição genética, objeto da criação divina.
Para compensar esse comportamento, escolheu então o caminho do saber. Por orientação da benfeitora, entrou na universidade pública. Enfrentou dificuldades e foram muitas, porém se destacou e concluiu o curso superior de história com êxito. Embora tivesse apoio de pessoas que o valorizasse dando condições de seguir e construir o seu objetivo, considerou-se rejeitado socialmente pela elite branca em função da epiderme que o caracteriza.
Infere-se uma pessoa socialmente discriminada, vítima do racismo disfarçado existente no país, com diversas formas de violência em ambientes sociais. Esse problema existe, sim. Que o racismo se apresenta de forma velada é uma verdade insofismável!
Assim se expressou o poeta Myrion Álvares da Silva, membro da Academia de Letras e Artes de Brumado – ALAB, em seu poema Preconceito racial, inserido no livro de poesias Cicatrizes (IV ensaio poético):
“Pra que tanto preconceito/Pra que gerar tanta dor,/Se ao pegar uma mão negra/Na sombra reflete a mesma cor”// Os mares são testemunhas/De inexplicável sofrimento,/Travessia de ‘Navios Negreiros’/Gritos alcançando o firmamento.//Os gritos nas margens do Ipiranga/Foi o soar de uma libertação,/ A assinatura da Lei Áurea/Foi o desabafo da escravidão.//As fortes correntes quebraram-se/Os grossos mourões logo apodreceram,/As senzalas não mais existiam/Mas nem assim os racistas pereceram.//Branca cor da paz e da ignorância/Preta cor do sofrimento e do respeito,/Cinza, cor, entretanto originada!/Da incompreensão e do preconceito.// A bandeira no cume do mastro/Para cantarmos o Hino Nacional,/Canta o povo índio, branco e negro./Para o bem da nação em geral.//Simples camuflagens de falsidade/Repugnando os limites da realidade,/Pois há brancos que não acostumaram/Em ver os negros em liberdade”.
Em sua trajetória, fez opção por buscar e manter a identidade cultural do negro, valorizando a sua inteligência e formação superior, promovendo a recuperação da sua história, garantindo-lhe a cidadania com relevo socioeconômico, cultural e político. Ele não abre mão de suas convicções, caracterizado por uma rigidez , componente de seu caráter. Valorizando a sua raça.
A história está cheia de personagens negros que lutaram e lutam pelos seus pontos de vista, apesar dos percalços sociais discriminatórios, seus ideais, seus objetivos, contra tudo e contra todos, são determinantes. Essa é a sua determinação, exaltar com orgulho o valor cultural e social do negro bem-sucedido.
Está escrito na Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei […]”; Art. 5º, item IV: “É dever do Estado promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação”. A religião também abomina a discriminação sobre qualquer pretexto.
“Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública” (blog: Somos diferentes, mas somos humanos). Aquele que se achar discriminado deve procurar os seus direitos constitucionais, lutando por aquilo que a lei põe à sua disposição, com o objetivo de garantir a sua cidadania.
Feitas essas considerações, a pessoa relatada, cuja história está sendo aqui contada, após assistir a uma missa, ainda na Igreja, confidenciou a um amigo, dizendo que Deus era injusto: “Como pode Deus criar um homem – referindo-se ao padre pregador: – alto, cabeleira cheia, branco, físico invejável, enfim, uma pessoa bonita e produzir um negro feio como eu?”. Um eclesiástico que ouviu o comentário colocou-se contra o indivíduo e falou-lhe das virtudes do Senhor e de suas posições justas, não discriminatórias e, indignado com o comentário, redarguiu: “Você não é feio, você é invejoso. Conforme-se com o que Deus lhe deu por merecimento”.
Ser preto não influi na formação intelectual do indivíduo. O que caracteriza a pessoa como homem de bem, independentemente da cor da pele, é o seu bom caráter, a sua credibilidade, a sua honestidade, a sua inteligência, o saber indiscutível e a sua formação moral. Tudo isso reunido dignifica e enaltece o cidadão.
Infelizmente, o protagonista dessa história, suicidou-se.