Muito além da crise financeira, do disparar da inflação e dos índices de popularidade da presidente Dilma Rousseff e da possibilidade de criação de novos impostos, o mês de outubro começa com uma forte e importante discussão em pauta no cenário político nacional: a redistribuição dos royalties do pré-sal entre estados produtores e não-produtores. A temperatura dos discursos e falácias já subiu nos corredores de Brasília e há quem diga que estamos diante de uma perigosa guerra federativa. Como maldisse o senador Walter Pinheiro, do PT da Bahia, “se um grão de sal faz subir a pressão, imagine o sal do pré-sal todo”.
O petróleo descoberto nas camadas de pré-sal se tornou um excepcional combustível para a politicagem do colarinho-branco. No apagar das luzes de seu mandato, em 22 de dezembro de 2010, o ex-presidente Lula vetou o modelo de distribuição dos royalties aprovado pelo Congresso Nacional. Agora, os parlamentares querem colocar em votação a derrubada desse veto presidencial e garantir que os recursos dos estados produtores se tornem um beneplácito mensalão para os não-produtores. Algo como o surreal Fundo de Participação dos Estados (FPE), instituído por Lei Complementar no governo de José Sarney – declarada inconstitucional pelo STF no ano passado – e definiu percentuais mais elevados para estados que tinham representantes com a mão maior para bater na mesa, como o falecido Antônio Carlos Magalhães para a Bahia e o próprio Sarney para o Maranhão.
Mas a questão da redistribuição dos recursos gerados pela extração do petróleo do pré-sal é um pouco mais complicada e muito provavelmente será votada e aprovada por uma legislatura de baixíssimo nível e cuja representatividade insiste manter-se distante da vontade popular e sempre abaixo da linha da cintura. No caso do dinheiro do pré-sal, ninguém sabe pra onde vai: se para a Educação, para a Saúde, para o Meio Ambiente ou apenas para bancar mais bravatas, gravatas e mamatas aos senhores feudais e coronéis que ainda imperam na política brasileira. Como é de costume, vamos continuar financiando os sonhos dos bandidos de terno – e até dos togados, utilizando aqui a recente e nada surpreendente definição da corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon.
Quando eu era criança, na cidade serrana fluminense de Paraíba do Sul, no caminho da escola existia uma papelaria “multifuncional”, ainda comum nos municípios diminutos e onde encontramos de cadernos a best-sellers. No meio do caminho tinha uma livraria; tinha uma livraria no meio do caminho, parafraseando obliquamente os famosos versos de Drummond. Meu sonho recorrente era entrar na loja próximo ao horário de fechamento, me esconder e ficar preso lá dentro. Na minha pueril concepção, poderia passar a noite lendo todos os livros que eu queria e usando todas as canetas que nossa parca renda familiar impedia meu acesso por vias “normais”. Era meu “sonho-bandido”, veja só!
A Petrobras é hoje para a politicagem brasileira o que a papelaria era para mim num passado nem tão remoto: trata-se apenas de um “sonho-bandido”. O desejo de governadores, deputados e senadores é sugar o máximo possível desse “ouro-negro” para encher suas próprias piscinas. Fala-se em “pé-de-meia gigante” e “passaporte para o futuro”. Mas não há qualquer estudo mais profundo que comprove à exatidão quão rentável será o petróleo extraído do pré-sal. Ou seja, querem porque querem fatias maiores desses royalties, sem sequer saber quanto isso representará ou que tipo de mentiras serão necessárias para desviá-los e para projetar e prometer o que não irão cumprir.
Foge-se dessa discussão como o diabo foge da cruz: quais serão as rubricas para os recursos do pré-sal? Em tese e só no papel – porque não se pode esperar mais que isso dos nossos imortais palhaços palacianos –, qual seria a destinação dos royalties incrementados ao orçamento de estados e municípios? Construir escolas, equipar e modernizar hospitais, levar o básico saneamento aos milhões que dele não dispõe, realizar obras de mobilidade urbana, investir em urgentes projetos de preservação ambiental? Não há um único governador, ministro, deputado ou senador capaz de apresentar um mínimo “pré-projeto” de investimentos para a suposta fortuna do pré-sal. Em suma, querem um pedaço desses tostões. Pra quê? Não interessa!
Se por um lado isso é assustador, por outro faz parte da nossa cultura política da “piada pronta”. Para regozijo do espírito de uma pseudodemocracia, infundiram que é melhor rir e debochar da atuação ignominiosa da classe política brasileira, do que se revoltar ou exigir qualquer mínima justiça. Basta dizer que, em recentíssimo protesto silencioso, a ONG “Rio da Paz” fincou, durante a madrugada, 594 vassouras verde e amarelas – representando cada um 513 deputados federais e 81 senadores – bem em frente ao Congresso Nacional. A proposta era Brasília amanhecer sob o signo desse visual. Adivinhe o que aconteceu?! Antes do raiar do dia, mais de 50 vassouras foram roubadas! É ou não é o país da piada pronta?!
Ao que tudo indica, o que vamos assistir a partir desta semana é uma sucessão de políticos subindo à tribuna ou concedendo entrevistas em nome de uma fatia maior de recursos do pré-sal para os estados produtores ou de uma divisão equânime dos royalties entre os não-produtores. O que não sabemos – e talvez jamais saibamos – são quais as rubricas desse “passaporte para o futuro”. Onde, de fato, ele deveria ser investido. O que aventamos é se partilhá-lo ou não irá financiar mais aeronaves para as viagens de férias dos políticos do produtor Rio de Janeiro ou se irá bancar a compra de helicópteros exclusivos para passeios de políticos do não-produtor Amapá em suas ilhas privativas no também não-produtor Maranhão. O povo brasileiro, uma plateia de fiadores acomodados, segue gargalhando e aplaudindo das nada confortáveis arquibancadas. E cada um – a seu modo, ética e moral – que tente tornar realidade seus “sonhos-bandidos”.