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STF reconhece omissão do Estado brasileiro na proteção territorial das comunidades quilombolas

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Em ação movida pela Conaq sobre adoção de medidas de proteção à Covid pelo Estado, Fachin aponta contradição na atuação do Incra.

Por Débora Rolando – Ascom

Diante da omissão do Estado brasileiro em garantir a proteção territorial das comunidades quilombolas, ainda mais no contexto de grave crise epidemiológica, a União deve apresentar, no prazo de 15 dias, metas, cronograma e dotação orçamentária para finalização dos processos de titulação das comunidades distribuídas por todo país. É o que determina o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, em decisão proferida no último dia 23 de agosto, no âmbito da ação movida no Supremo pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e partidos políticos.

Relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742/2020, Fachin e a maioria dos demais ministros já tinham determinado, em fevereiro deste ano, ao Estado brasileiro a adoção de medidas de urgência no combate à pandemia nos quilombos e de proteção a essas comunidades. Naquele momento, o Supremo designou ao governo a elaboração, com participação das comunidades, e implementação de um plano de enfrentamento da pandemia nas comunidades.

Passados mais de cinco meses da decisão, as informações apresentadas ao STF pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pela Fundação Cultural Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) evidenciam a permanência de uma omissão estatal histórica em relação a garantia dos direitos territoriais quilombolas, omissão esta com impactos acentuados à população quilombola nesta pandemia.

Apesar dos esforços da Conaq e demais organizações que incidem sobre o Grupo de Trabalho de elaboração e monitoramento do Plano, não houve avanço em fazer com que os órgãos responsáveis pela proteção territorial das comunidades estabelecessem medidas concretas de efetivação das determinações judiciais da ADPF.

“A vulnerabilidade das comunidades quilombolas e a deficiência protetiva, revelada especialmente no atraso no reconhecimento territorial, são por certo anteriores à pandemia. Esta, no entanto, exacerbou esse inadimplemento da política estatal, revelando a fatalidade da omissão”, sublinhou o ministro.

A decisão foi comemorada pelas organizações de defesa dos direitos de comunidades quilombolas. “É muito simbólico, do ponto de vista jurídico, esse reconhecimento pelo STF. Há tempos estamos denunciando essa omissão. O reconhecimento disso pelo corte suprema nós dá a força, ou melhor, abre um leque para disputas em outro poder da República na luta quilombola para ter suas terras tradicionais tituladas”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos e Conaq, Vercilene Dias.

O caminho do acionamento da justiça tem sido uma alternativa diante da inércia da atual gestão nos processos de regularização dos territórios tradicionais. Desde o início da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido), apenas três comunidades quilombolas no Brasil tiveram acesso ao título coletivo da área onde residem: comunidades quilombolas Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu (PR), Invernada dos Negros, em Campos Novos (SC), e Rio dos Macacos, em Simões Filho (BA). Todas elas só conseguiram finalizar o longo processo de regularização dos territórios após moverem ações na justiça.

Ainda que a proteção territorial quilombola esteja assegurada na Constituição Federal, “as medidas que deveriam ser efetivadas desde sempre”, como aponta Fachin, para efetivar titulação das comunidades não têm sido efetivadas. De acordo com dados da Conaq, apenas 162 das 3.477 comunidades quilombolas já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares detêm a titularidade total ou parcial das terras, o equivalente a quase 5%. Atualmente, há cerca de 1,8 mil processos tramitando no Incra. A organização ainda estima que ainda existam outros 2,5 mil territórios não reconhecidos pela Palmares. E o cenário atual segue desanimador. Cumprindo promessas feitas no período pré-eleitoral, a Presidência responde pela menor marca histórica de áreas tituladas e não há indicativo, pelas manifestações de governo ou previsão orçamentária, de mudança de cenário.

A manifestação do ministro encontra eco com o posicionamento da Procuradoria-Geral da República na ação. “A situação de vulnerabilidade das comunidades quilombolas é agravada pelo insignificante número de territórios titulados, que obriga muitas comunidades a viverem em pequenas áreas e constantemente ameaçadas de expulsão, daí que a continuidade, de forma célere, do processo de titulação dos territórios quilombolas é uma das medidas mais relevantes de proteção territorial que se espera do Incra”, aponta trecho destacado pelo ministro na decisão.

Titulação como condição da proteção

A titulação dos territórios tradicionais quilombolas, além de garantir maior proteção legal diante de interesses do mercado sobre as áreas, também possibilita a instalação regularizada de fornecimento de energia elétrica, água e saneamento básico, entre outros, e a própria dinâmica de reprodução da vida coletiva.

Cerca de 75% da população quilombola vive atualmente em situação de extrema pobreza, dispondo de precário acesso às redes de serviços públicos, aponta uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Neste quadro, apenas 15% dos domicílios têm acesso à rede pública de água e 5% à coleta regular de lixo, e em 89% dos domicílios o lixo doméstico é queimado. Só 0,2% estão conectados à rede de esgoto e de águas pluviais. O acesso à água e estruturas adequadas de saneamento são apontadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como essenciais para proteção à disseminação desenfreada do coronavírus. A população quilombola também não consta como destinatária de políticas públicas específicas no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023.

Esta fotografia acima dialoga a avaliação da integrante da Conaq, doutoranda e educadora quilombola no território de Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE), Givânia Silva, sobre a essencialidade da titulação dos territórios como proteção à vida, em tempos pandêmicos ou não. “As comunidades quilombolas estão hoje mais vulneráveis [por conta da Covid] porque já estavam em processo intenso de vulneravilidade antes”, sublinha Givânia.

“Então o ministro, ao decidir pela necessidade de proteção aos territórios quilombolas, ele está se colocando para olhar este lugar como lugar de base e sustentação do fazer, do viver, da produção cultural e existência das comunidades que estão espalhadas por todo Brasil. É uma leitura acertada num momento que tem um Estado ausente e com forte acentuação institucionalizada do racismo liderado pelo presidente”, destaca ela.

Incra: para os empreendimentos

A recente decisão do ministro ainda apontou como contraditória a atuação do Incra na suspensão do trabalho de campo dos servidores da autarquia para elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) – etapa fundamental no processo de regularização, sob pretexto de medida sanitária. Ao mesmo tempo o Incra relatou que permite a continuidade dos processos de licenciamento ambiental, com permissão e entrada de empresas nos territórios quilombolas. A autarquia relatou que o advento da vacinação nas comunidades cria um ambiente seguro para o transito interno. No entanto, monitoramento realizado pela Conaq, com apoio da terra de Direitos e Ecam demonstram uma baixa cobertura vacinal de 2ª dose nos territórios.

“Essa suspensão, no entanto, compromete a política de regularização dos territórios também enquanto política sanitária de dimensão coletiva a conferir segurança territorial às comunidades”, disse o ministro.

Fachin ainda determinou que a União imediatamente explique esta escolha e que “reveja as prioridades da atuação do Incra em relação à priorização do licenciamento ambiental para a exploração do terceiro”. Na decisão de fevereiro o STF determinou a adoção de medidas pelo Estado para “controle de entrada nos territórios por terceiros considerado isolamento social comunitário”.

“De um lado você paralisa o processo de regularização e por outro coloca equipe em campo para licenciamento ambiental. A prioridade do Incra é fazer que empreendimentos adentrem por nossos territórios, e não reconhecer nossos direitos territoriais”, enfatiza o integrante da coordenação da Conaq, Biko Rodrigues. Ele ainda relata que apenas 100 de um corpo técnico de 2700 funcionários do Incra atuam na pauta quilombola.

Diálogo efetivo

Na decisão, o ministro ainda intimou a União para apresentar, no prazo de 15 dias, um método de acompanhamento das denúncias apresentadas pelas comunidades no canal online de diálogo com Incra e Fundação Palmares “independentemente da fase do processo de certificação ou titulação”, diz a decisão.

Reivindicada pelas comunidades no Grupo de Trabalho da ADPF, o canal online deveria servir para relato de denúncias sobre violações aos territórios quilombolas e acompanhamento do status da denúncia pela comunidade. No entanto, a plataforma atual apenas permite o envio do email para a Fundação, sem possibilidade de acompanhamento de como o órgão irá proceder diante da denúncia. Tampouco as comunidades têm uma resposta à denúncia feita.

“Um simples painel de denúncia não resolve a inércia da autarquia em atuar na resolução de conflitos nos territórios, porque além de limitar a denúncia apenas as comunidade quilombolas certificadas o formulário não oferece meios de retorno às comunidades sobre o acompanhamento das demanda ou conflito denunciado, além de não integrar as ações dos órgão responsáveis pela proteção territorial conforme determinação do STF”, destaca Vercilene.

Biko ainda reforça a necessidade de retomada de diálogo entre as comunidades quilombolas e o Incra. As “mesas quilombolas”, espaço criado em 2016 de conversas entre as superintendências regionais da autarquia e comunidades para solução de casos, foram suspensas no início da atual gestão. “A Conaq sempre buscou diálogo com o Incra, mesmo neste governo. Nós nunca fechamos a porta do diálogo com o Incra, o Incra que não quer sentar conosco”, sublinha. A liderança ainda relata que foram solicitadas reuniões com o Incra em mais de oito oportunidades. Em nenhuma o órgão acolheu o pedido.

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Jornal Digital Jornal Digital – Edição 745