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Tese premiada investiga a genealogia da surdez na política de saúde no país

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Pesquisa analisa construção de políticas públicas e conquistas do movimento social de pessoas com deficiência auditiva

 

Texto: Edimilson Montalt / FMC / Especial para o JU  Fotos: Mário Moreira Edição de Imagem: Luis Paulo Silva

 

A tese de doutorado Ruídos e silêncios: Uma análise genealógica sobre a surdez na Política de Saúde brasileira, de Núbia Garcia Vianna, doutora em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, ganhou o Prêmio Excelência em Fonoaudiologia de melhor tese na categoria Saúde Coletiva.

A orientação foi de Maria da Graça Garcia Andrade e a coorientação foi de Flávia Cristina Silveira Lemos. A entrega do prêmio aconteceu durante o encerramento do XXVI Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia, III Congresso Ibero-Americano de Fonoaudiologia e VI Congresso Sul-Brasileiro de Fonoaudiologia, realizados em outubro, em Curitiba.

O estudo teve por objetivo analisar as relações de poder e saber no campo da surdez tendo como ponto de partida o Plano Nacional de Direitos à Pessoa com Deficiência – Viver sem Limite e seu principal desdobramento na saúde, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência.

A experiência prévia como fonoaudióloga na área da reabilitação auditiva, associada aos estudos no campo da Saúde Coletiva, motivou a pesquisadora a investigar por que, na política de saúde voltada a este segmento da população, temas como a língua de sinais não são abordados.

“Precisei ir fundo na história da surdez e da construção das políticas públicas para pessoas com deficiência para compreender as relações de forças, as tensões e os múltiplos interesses que se constituíram como condição para a criação deste plano e da atual política de saúde”, revela Núbia.

Foto: Mário Moreira
A fonoaudióloga Núbia Garcia Vianna: reabilitação é uma das principais bandeiras de luta.

Para a análise, Nubia selecionou documentos como leis, decretos, portarias, cartilhas e relatórios, bem como entrevistou pessoas consideradas importantes no campo da deficiência, da surdez e das políticas públicas: gestores do Ministério da Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos, profissionais de saúde e de entidades, pesquisadores e lideranças do movimento social dos surdos e da pessoa com deficiência.

Na tese, a autora transita pelas batalhas e conquistas do movimento social de pessoas com deficiência e avanços legislativos, até culminar na criação da principal política já desenvolvida no país para esta população – o Viver sem Limite.

O Viver sem Limite contou com a gestão da Secretaria de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e com o acompanhamento da Casa-Civil, que fazia monitoramento das ações e de todo o processo, juntamente com o Conselho Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).

“A presença constante da Casa Civil é fato considerado decisivo para o andamento do Plano, pois uma pauta como a dos ‘Direitos Humanos’ tende a ser tratada com menos importância ou urgência no conjunto das demandas dos ministérios”, pontua Núbia.

O Plano Viver sem Limite, apesar de ter durado de 2011 a 2014, deixou um importante legado: a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, política que vem procurando ampliar o acesso e qualificar o cuidado à saúde.

A pesquisa revela que foi em função do Plano que o tema da deficiência entrou como pauta prioritária na agenda do Sistema Único de Saúde, em um momento chave em que o Ministério da saúde havia definido as Redes de Atenção à Saúde como estratégia para o alcance da integralidade e superação da fragmentação do cuidado.

“A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência trazia, portanto, inovações no campo da reabilitação, que visavam superar a fragmentação do cuidado induzido pelas normativas anteriores. Assim, a saúde da pessoa com deficiência passou de uma ação, dentre as várias ações programáticas do Ministério da Saúde, para tema prioritário dentro da mais importante pasta ministerial, fato inédito desde a criação do SUS”, aponta a fonoaudióloga da Unicamp.

Nubia deu ênfase, em sua análise, ao tema da surdez no contexto desta rede, colocando em evidência os contrassensos entre as conquistas e as proposições do setor saúde para o segmento de pessoas com deficiência auditiva.

“Enquanto política, a rede direciona suas ações exclusivamente para o alcance de uma norma ouvinte, desconsiderando que os sujeitos surdos podem ser múltiplos”, diz Núbia.

A questão que se impõe a toda política de saúde que se norteia pelo princípio da integralidade, de acordo com a pesquisa, é como construir um sistema de saúde capaz de atender as necessidades de pessoas com deficiência compreendendo que suas demandas vão muito além da reabilitação.

De acordo com Núbia, há surdos que desejam ouvir e, portanto, o uso de recursos tecnológicos como os aparelhos auditivos e do implante coclear associado à terapia fonoaudiológica atenderá às suas expectativas. Já há outros que não, pois suas demandas dizem respeito mais ao uso da língua de sinais e de que seus direitos linguísticos sejam assegurados, inclusive, no campo da saúde.

Núbia ainda destaca que não é difícil imaginar que qualquer prática assistencial é, no mínimo, dificultada quando profissional e usuário têm línguas diferentes, sem contar com todas as outras práticas de saúde-cuidado que são elaboradas pensando, exclusivamente, em um mundo sonoro.

“Basta tentar recordar se alguma das campanhas recentes contra HIV/Aids ou dengue tinha a informação veiculada, também, em língua de sinais. A privação da audição, por si só, já é algo que, se não for considerado na relação assistencial, virá acompanhada de atitudes discriminatórias”, exemplifica Núbia.

Segundo Núbia, a reabilitação vem sendo uma das principais bandeiras de luta do movimento social de pessoas com deficiência, encarada como uma necessidade premente por, praticamente, todos os segmentos de pessoas com deficiência, exceto pelos surdos usuários de língua de sinais, que exigem garantias de acesso à saúde em sua concepção mais geral.

“Isso tem sido uma demanda legítima, pois o pleno acesso à saúde ainda não está dado”, finaliza.

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