Um balanço feito pela Câmara Criminal do Ministério Público Federal (2CCR/MPF) revelou que, no ano de 2017, foram instauradas na primeira instância da Justiça Federal mais de 70 ações penais por crime de redução à condição análoga à de escravo. Os estados onde houve maior concentração de denúncias recebidas foram Tocantins (13) e Minas Gerais (12), seguidos de Bahia (7) e Maranhão (6). Nesse mesmo período, 265 inquéritos policiais foram iniciados e 283 procedimentos extrajudiciais autuados.
O levantamento também destaca a participação de membros do MPF em 11 operações de resgate de trabalhadores no ano passado, realizadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel. O grupo, criado em junho de 1995, tornou-se referência internacional em matéria de enfrentamento ao trabalho escravo, sendo considerado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como a base de toda a estratégia de combate ao trabalho escravo. Já resgatou cerca de 50 mil trabalhadores. Além do MPF, fazem parte da equipe o Ministério do Trabalho, as Polícias Federal e Rodoviária Federal, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União.
No MPF, a 2CCR é responsável por receber o resultado de todas as fiscalizações ordinárias dos auditores fiscais de Trabalho e o das operações do Grupo Móvel. Como explica a coordenadora da área criminal, subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, os dados são aglutinados e distribuídos para os procuradores em cada estado. “O tema é prioritário da 2ª Câmara. Nosso objetivo é tornar o trabalho mais eficiente, reforçando o diálogo com os parceiros, monitorando e ajudando os colegas a fazer denúncias”, detalhou.
Na avaliação da procuradora da República Ana Carolina Roman, representante do MPF na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), o resultado só foi possível devido a um conjunto de ações promovidas pela instituição, como a participação efetiva de membros do Ministério Público em operações de resgate, a realização de cursos sobre o assunto e a inclusão do tema no Curso de Ingresso e Vitaliciamento dos novos procuradores. “O MPF tem assumido seu papel como protagonista nesse tema. Somos nós que temos que propor a ação penal. E era de fato uma demanda da sociedade civil”, afirmou.
Para combater de forma mais eficaz esse tipo de crime, a coordenadora nacional do Grupo de Apoio ao Combate à Escravidão Contemporânea (Gacec) do MPF, procuradora regional da República Adriana Scordamaglia, ressaltou que é preciso ampliar as parcerias com órgãos de fiscalização, além de destinar recursos financeiros e humanos. “A melhor prova é a feita pelo Grupo Móvel. Infelizmente o MPF não tem verba nem pessoal suficiente para participar de todas as ações do grupo móvel”, ponderou.
Impunidade – Apesar da atuação conjunta por diversos órgãos em todo o país, ainda é reduzido o número de condenações por crime de redução à condição análoga à de escravo, avaliam especialistas da área. A demora na tramitação dos processos e as inúmeras possibilidades de recurso também contribuem para adiar a punição de quem comete o crime.
Na cidade de Pirajuí, interior de São Paulo, por exemplo, a condenação de três pessoas que mantiveram ao menos dez trabalhadores em condições análogas às de escravo em uma carvoaria nas dependências de uma fazenda demorou praticamente uma década para chegar. Em Nova Bandeirantes, no Mato Grosso, a sentença que condenou o gerente de uma fazenda por submeter 19 trabalhadores – três deles menores de 18 anos – a condições degradantes, jornadas exaustivas e restrição à locomoção em razão de dívida veio oito anos depois do flagrante feito por auditores fiscais do trabalho, em 2009.
Segundo a coordenadora do Gacec, Adriana Scordamaglia, a sensação de impunidade também reflete uma certa resistência de setores do Judiciário em aplicar o artigo 149 do Código Penal. De acordo com esse dispositivo normativo, o crime de redução à condição análoga à de escravo se caracteriza pela existência de trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.
“Considero que o ano de 2018 será decisivo para que o MPF combata melhor o trabalho escravo. Com novas ferramentas e conscientização, além da prestação de auxílio aos procuradores naturais na instrução dos processos. Assim teremos denúncias com melhor qualidade e melhor aceitação da aplicação do artigo 149 pelo Judiciário”, frisou.
Entraves ao combate à escravidão – Na opinião da procuradora Ana Carolina Roman, o ano de 2017 foi de altos e baixos, sobretudo devido aos sucessivos ataques à política nacional de combate ao trabalho escravo no Brasil. O cenário de contingenciamento orçamentário, por exemplo, resultou na diminuição do número de fiscalizações ordinárias nos estados. Além disso, em 17 de outubro, o Ministério do Trabalho (MTb) publicou a Portaria 1129/2017, alterando conceito de trabalho escravo e dificultando o combate ao crime. A medida, considerada ilegal por ferir a dignidade da pessoa humana, foi alvo de uma recomendação conjunta do MPF e do MPT, que pediram a revogação imediata do ato normativo. Dias depois, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber concedeu liminar suspendendo os efeitos da Portaria 1129.
O MPF também propôs à Justiça ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro do Trabalho. Segundo os procuradores que subscrevem o pedido, a atuação de Ronaldo Nogueira, de forma deliberada em desrespeito às normas legais, resultou no enfraquecimento das estruturas e serviços públicos de fiscalização e combate ao trabalho em condição análoga à de escravo e no desmonte da política pública de erradicação do trabalho escravo.
Dias antes de pedir exoneração, o ex-ministro Ronaldo Nogueira editou a Portaria 1293/2017, em 28 de dezembro, regulando procedimentos de fiscalização do trabalho. “Essa nova portaria é importante porque ela restaura a legalidade e traz o conceito de trabalho escravo previsto no artigo 149 do Código Penal. Mas não é um avanço. Se não houvesse a portaria de outubro, a nova não seria necessária” argumenta Roman. Ou seja, caso a liminar do STF seja derrubada, as regras antigas voltam a vigorar.
Lista Suja – Por outro lado, a Portaria 1293/2017 dá maior legitimidade ao Cadastro de Empresas Infratoras por prática de trabalho escravo, a chamada Lista Suja. “Porque a Portaria 1293 deixa claro que a obrigação de divulgação da Lista Suja é da Detrae [Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, órgão interno do MTb]. Ou seja, que é da área técnica do Ministério do Trabalho”, afirmou Ana Carolina Roman.
Entre dezembro de 2014 e março de 2017, a Lista Suja não foi publicada. Um dos empregadores questionou a legalidade do mecanismo junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), e o ministro Ricardo Lewandowski, em caráter liminar, suspendeu a divulgação em dezembro de 2014. Após a publicação da Portaria Interministerial MT/MMIRDH nº 4/2016, reformulando os critérios de inclusão e saída do cadastro, a ministra Cármen Lúcia, em 2015, suspendeu a proibição. No entanto, o Ministério do Trabalho continuou sem publicar o documento.
Apenas no final de março de 2017 o Mtb publicou o cadastro. Ainda assim, a lista com 85 empregadores foi retirada ao ar e, duas horas depois, voltou com apenas 68 nomes, cuja diminuição da lista não contou com respaldo técnico da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae). Por retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, o ministro é acusado de improbidade administrativa.
Uma das medidas mais emblemáticas e eficazes no combate à escravidão contemporânea, adotada em 2003, a lista suja é resultado de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, que colocou o país como referência na luta global contra o trabalho forçado. Estar na lista suja significa restrição de crédito e da própria atividade comercial. Além de ser uma medida de transparência, configura-se em instrumento inibidor da prática e de proteção àqueles que se encontram em vulnerabilidade econômica e social.