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Varrer, lavar e enxaguar o entulho autoritário

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Por Luiz Frederico Rêgo

Recentemente, a Justiça de São Paulo determinou ao prefeito Ricardo Nunes (MDB) a alteração de nomes de ruas e equipamentos da capital que homenageiam torturadores e fatos associados à violação de direitos humanos. A decisão do juiz Luis Manuel Fonseca Pires, em ação da Defensoria Pública da União, considerou que o poder público foi omisso “quanto ao início de renomeação desses espaços públicos em cumprimento ao direito à memória política que se associa ao regime democrático e à dignidade da pessoa humana”, destacando a sentença que São Paulo “permanece repleto de vias, logradouros e equipamentos cujos nomes guardam estrita conexão com a ditadura empresarial-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985”.

A recente decisão judicial motivada pelo Instituto Vladimir Herzog (jornalista torturado e assassinado em outubro de 1975 pela Ditadura nas instalações do DOI-CODI, em São Paulo); a conquista do Globo de Ouro na madrugada da última terça premiando a magistral atuação da atriz Fernanda Torres no excelente filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, que retrata o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, cassado e assassinado pelo mesmo regime militar que matou Herzog; e as mobilizações para o ato em Memória ao ataque ocorrido em 8 de janeiro de 2023 – quando militantes bolsonaristas e saudosistas do golpe de 1964 invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília-DF, numa tentativa de golpe de Estado – são três fatos que demonstram a importância da defesa da Democracia e do repúdio à Ditadura.

O famigerado dia 8 de janeiro de 2023, apropriadamente chamado de “Dia da Infâmia” pela então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministra Rosa Weber, não pode ser esquecido ou menosprezado. O país foi surpreendido por um ataque, quando autonomeados patriotas invadiram e vandalizaram o Congresso, o Palácio do Planalto e o STF. Hoje sabemos que o 08/01 era parte do plano terrorista posto em execução para assassinar, antes da posse, o presidente Lula, seu vice Geraldo Alckimin, e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes. Por pouco este plano macabro não foi executado.

Com o cumprimento de ordens em 09/01/2023 para desmobilização do acampamento bolsonarista que estava montado em frente ao Quartel General do Exército, 1.927 pessoas foram conduzidas para a Academia Nacional de Polícia. Deste total de detidos, 775 foram liberados (entre elas, idosos e mães de crianças pequenas). Até o momento, o STF já condenou 371 das mais de duas mil pessoas investigadas. Esse balanço foi divulgado ontem (7/1) pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos relacionados ao caso.

Um dos detidos neste triste episódio da História brasileira não viu seu processo ter um desfecho. Preso preventivamente acusado de participar dos ataques de 8 de janeiro, o comerciante Cleriston Pereira da Cunha faleceu aos 46 anos, na manhã do dia 20/11/2023, no Complexo Penitenciário da Papuda, ao sofrer um infarto fulminante. Conhecido entre amigos e parentes como “Clezão do Ramalho”, o baiano morava há pelo menos 20 anos no DF. Era irmão de Cristiano Pereira da Cunha, vereador de Feira da Mata, reeleito no último dia 06 de outubro pelo PSD, partido que dá sustentação na Bahia ao governo Jerônimo Rodrigues (PT).

Conforme noticiado pelo Achei Sudoeste (veja aqui: https://www.acheisudoeste.com.br/noticias/63863-2023/12/08/patriota-prefeito-de-brumado-vai-homenagear-cleriston-pereira-da-cunha-com-nome-de-praca), dois dias após a morte de Clezão, em 22/11/2023, o então prefeito de Brumado, Eduardo Lima Vasconcelos, numa live, prestou solidariedade ao “patriota”. “Com grande pesar que há um cadáver hoje, lá no plenário do Supremo Tribunal Federal. O cadáver de Clezão, que foi morto por negligência jurídica do ministro conhecido como Xandão [Alexandre de Moraes]. Essa figura tristemente conhecida com uma grande quantidade de pedidos de impeachment”, falou o ex-prefeito na ocasião. Na semana seguinte, na live da administração municipal no dia 29 de novembro, Eduardo Vasconcelos anunciou que homenagearia Clezão nomeando uma praça recém-construída no Bairro Apertado do Morro.

É lamentável que o senhor Cleriston da Cunha tenha falecido no curso do processo, sem a oportunidade de provar ou não sua inocência. Sua família sofreu uma perda que é irreparável, e me solidarizo diante desta fatalidade. Mas também fico a pensar que, não tivesse comparecido à convocação golpista de janeiro de 2023, Clezão poderia estar hoje desfrutando do convívio de seus familiares. Muitos dos réus do 8 de janeiro foram considerados culpados pela Justiça, alguns inocentados e outros aguardam julgamento. Mas todos, acredito, são vítimas – não do STF ou do “sistema” como idiotas úteis divulgam, mas vítimas de um fanático com vocação para Jim Jones, um líder de seita extremista que ocupou a cadeira de Presidente da República por quatro tenebrosos anos, e que é diretamente responsável por 4 em cada 5 mortes de Covid-19 no Brasil conforme cálculo do epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, em depoimento à CPI da Covid no Senado, o que resultou na perda de 480 mil vidas conforme matéria da Carta Capital em 21/10/2021 (https://www.cartacapital.com.br/edicao-da-semana/bolsonaro-e-diretamente-responsavel-por-quatro-em-cada-cinco-mortes/).

Na Bahia, um total de 31.593 pessoas perderam a vida por conta da Covid, sendo que o município de Brumado registrou um total de 9.772 casos, com letalidade acima de 2% e o registro de 199 óbitos. Não me recordo de nenhuma das vítimas dessa abominável doença ter sido homenageada pelo ex-prefeito Eduardo, mas um baiano sem vínculos com Brumado e sem histórico de relevantes serviços prestados a nível estadual ou nacional, fez jus, no entender do gestor adorador do negacionista e protofascista Bolsonaro, a ser homenageado com nome de uma praça em Brumado, inaugurada em 17 de maio passado, segundo o Achei Sudoeste (https://www.acheisudoeste.com.br/noticias/66747-2024/05/15/praca-com-o-nome-de-empresario-morto-na-papuda-sera-inaugurada-em-brumado).

Na contramão da História, e do que tem sido cada vez mais evidenciado em favor da defesa da Democracia, a homenagem prestada ao ex-prefeito Eduardo foi só mais um entre tantos desatinos seus que fomos obrigados a conviver nos últimos 20 anos. Tantas grosserias foram proferidas pelo ex-prefeito, tantos absurdos perpetrados por sua ação, que se chegou ao ponto de tais absurdos serem normalizados. Ninguém mais duvidava, em Brumado, quando se falava de qualquer ato esdrúxulo ou fala abjeta atribuída ao ex-prefeito, simplesmente se acreditava de que ele era capaz de tal feito. Ao ver Eduardo Vasconcelos ingressar na vida pública em janeiro de 2005, os brumadenses vivenciaram métodos e práticas políticas que o Brasil só foi descobrir que existiam quando Bolsonaro tomou posse em 2019: com antecedência de 14 anos, em Brumado se operou técnicas de comunicação e de um agir político que os cientistas sociais brasileiros e estrangeiros se debruçaram a estudar somente após a vitória de Donald Trump em 2016 e a de Bolsonaro em 2018. Se servir para alguma coisa, Brumado foi pioneira em algo que levou tempo a se revelar para o mundo.

Não se pode chamar o ex-prefeito Eduardo de incoerente, pois a homenagem que ele prestou ao “patriota” Clezão guarda coerência com o contexto ideológico no qual o gestor se inseriu. O 8 de janeiro de 2023 não surgiu espontaneamente, foi o desaguar de uma cadeia de eventos, iniciada no 7 de Setembro de 2021, quando Bolsonaro reuniu multidões, acusou o Supremo Tribunal Federal, e disse que não ia obedecer ordens e decisões do STF – o prefeito de Brumado participou deste ato em Brasília, desfilando pela capital sem máscaras, conforme noticiado pelo Achei Sudoeste (Achei Sudoeste). Depois disso, teve o dia 30 de outubro de 2022, quando Bolsonaro não reconheceu o resultado das eleições presidenciais, discurso reverberado nas lives do então prefeito de Brumado. E no dia 12 de dezembro, ocorreu um ensaio geral do 8 de janeiro, com vandalismo em Brasília. A sucessão de atos e discursos golpistas de Bolsonaro teve impacto direto na radicalização do grupo que o apoiava, levando milhares de brasileiros, como Clezão, a ir ao Distrito Federal na semana seguinte à posse do novo governo, e o desfecho já é conhecido.

Neste 8 de janeiro se completam 2 anos do infame ocorrido. Os golpistas estavam exaltados, mas as instituições resistiram. Mesmo fragilizada, a Democracia ficou de pé. O pacto político firmado na redemocratização, que resultou na Constituinte, mostrou sua eficácia. Quando proferiu palestra intitulada “A Constituição de 1988 e o Supremo Tribunal Federal”, no seminário “25 Anos da Constituição Cidadã”, no dia 06/09/2013, há 11 anos, o Ministro do STF Gilmar Mendes lembrou que o momento histórico de promulgação da Constituição de 1988 foi de grande euforia, de vontade de construir uma democracia. Antecedeu-o o movimento das Diretas Já, que levou milhões de pessoas às ruas, para que o País se livrasse do “estigma do governo autoritário”. Segundo Gilmar Mendes, o Movimento das Diretas permitiu “a complexa engenharia” que levou à eleição de Tancredo Neves no “improvável” Colégio Eleitoral, onde os candidatos comprometeram-se com a convocação de uma Assembleia Constituinte e com a promessa de varrer o chamado “entulho autoritário”.

Passados 20 anos, Brumado também espera se livrar do “estigma do governo autoritário”, com o início de uma nova gestão que desperta esperança no diálogo. Tal esperança e euforia foi materializada nos vídeos que registraram, nos dias que antecederam a posse do novo prefeito, os munícipes varrendo e lavando a entrada do prédio da Prefeitura de Brumado. O novo prefeito, Fabrício Abrantes, tem a oportunidade rara de também varrer, lavar e enxaguar o entulho autoritário deixado em Brumado, não só no decorrer de sua gestão, mas também de forma simbólica, por meio de atos políticos e administrativos. Poderia começar isso decretando neste 8 de janeiro a revogação de homenagens como as feitas pelo seu antecessor, um triste legado que visou promover quem foi marcado de forma permanente com uma data que vai ficar para a posteridade como registro da bestialidade e da infâmia nacional.

Democracia Sempre, Ditadura Nunca Mais!

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Jornal Digital Jornal Digital – Edição 745